Para entender a riqueza das formas de expressão do componente africano em solo sulino é necessário verificar a formação histórica do Rio Grande do Sul, principalmente na cidade de Porto Alegre.
A pesquisa histórica sobre o atual Rio Grande do Sul data do início do século XIX. O grande estímulo foi a transferência da sede do império português para o Brasil, que neste momento deixou de ser colônia.
A primeira obra de caráter histórico foi Anais da Capitania de São Pedro, de José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo. O primeiro volume de seu trabalho foi publicado em 1819, ainda quando o Rio Grande do Sul era capitania. A figura de Fernandes Pinheiro personifica exemplarmente o que significa pesquisar e “fazer historia” no Rio Grande do Sul na época.
Um dos historiadores que sucederam Fernandes Pinheiro na tarefa de pesquisa e publicação de trabalhos historiográficos sobre o Rio Grande do Sul foi Antônio Álvares Pereira Coruja, tendo publicado varias obras desde a década de 1830. Coruja produziu lições da história do Brasil e sobre a história do cotidiano de Porto Alegre. O professor Coruja descreve os primeiros tempos da cidade de Porto Alegre.
Ao explicar a origem da denominação beco do leite, lembra que ali residiu o alfaiate Manoel Leite, conhecido por ser “amigo de boas patuscadas aos domingos com os rapazes e caixeiros”. Menciona a famosa casa em que moravam “moças cantadeira, e que dizem que cantavam bem, aonde aos domingos iam moços passear”. Informa que, no Candomblé de Mãe Rita, os negros se reuniam no domingo à tarde para cantos e danças.
Coruja é um dos primeiros a dar notícias sobre rituais da religião africana, citando a casa de Mãe Rita, a primeira mãe de santo que se tem registro na cidade de Porto Alegre. Nesta época já se tem vestígios da estruturação do Batuque em Porto Alegre, e no Rio Grande do Sul.
No ano de 1997 a Companhia Estadual de energia Elétrica CEEE, publica um almanaque com o título História Ilustrada de Porto Alegre. Em um dos capítulos menciona os Batuques da Mãe Rita com o seguinte conteúdo:
Até a segunda década do século 19, nas procissões de Nossa Senhora do Rosário e nos dias de Natal, os negros costumavam expressar sua religiosidade da forma mais espontânea: dançando na frente da igreja matriz, com guizos e ao som de tambores, marimbas e urucungos. Exibiam a mesma naturalidade mostrada nos Batuques do terreiro de Mãe Rita, a mãe de santo da época – a primeira que se tem noticia na cidade.
Nenhuma autoridade religiosa da Matriz, como era chamada a igreja Madre de Deus, havia se importado até então com esta manifestação de ecletismo religioso. A exceção foi o vigário José Inácio dos Santos Pereira. Ele proibiu que executassem rituais africanos ali, com a alegação oficial de que a vizinhança reclamava do barulho. Mas os negros se consideravam expulsos. E partiram para um empreendimento arrojadíssimo: a construção de sua própria igreja, ou melhor, um templo católico em que se sentissem à vontade.
Durante dez anos, de 1817 a 1827, eles trabalharam na obra: à noite, os escravos; em horas vagas do dia, os negros alforriados. Enfim, na festiva noite de 24 de dezembro de 1827, receberam com lágrimas nos olhos a imagem da padroeira, que se encontrava na Matriz. Estava inaugurada a igreja Nossa Senhora do Rosário, na então Rua da Bandeira, mais tarde denominada Rua do Rosário e, por fim, por certa ironia, Rua Vigário José Inácio, homenagem ao sobrinho do padre que expulsara os negros.
Na verdade, o novo templo não foi resultado de mera ação de voluntarismo. Foi a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, entidade fundada em 1786, na qual os negros eram maioria, que comprou o terreno e comandou a construção. Enquanto duraram os trabalhos, as festas se resumiram ao de sempre: batuques nas tardes de domingo fora do centro urbano, em frente ao matadouro, mais ou menos onde é hoje a esquina das avenidas João Pessoa e Venâncio Aires.
Embora tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, no início dos anos 50, a antiga igreja foi demolida, para ser substituída pela atual – a pedido de religiosos católicos e por decreto do então presidente Getúlio Vargas.
A presença do negro no estado do Rio Grande do Sul se expressa na própria história deste estado que, em seus principais momentos, de um modo ou de outro, contou com o testemunho e a ativa participação dos afrodescendentes.
Com os primeiros colonizadores, já vieram escravos, que chegaram a ser um terço da população da província na metade do século 19.
Por volta do ano de 1600, traficantes portugueses já traziam escravos do Rio de Janeiro para revender no Rio da Prata. “Desembarcavam a carga em vários pontos da costa, na barra do Rio Grande ou mais abaixo no Chuí. Estes escravos vieram do famoso Mercado do Valongo, de onde se originaram quase 90% dos negros introduzidos no Rio Grande.
A fundação de Porto Alegre estava inserida na expansão dos domínios portugueses ao Sul do Brasil, visando participar do comércio no Rio Prata.
No século XVIII, a foz do Rio da Prata era um espaço estratégico a ser conquistado, pois por ela escoavam parte da prata e do ouro das minas mais ricas da América Espanhola. Ao mesmo tempo, a exploração do ouro nas Minas Gerais, no Brasil, criou a demanda de novos produtos, tais como animais de carga, couro para confeccionar diversos utensílios e carne (charque) para alimentação da escravaria. A descoberta pelos tropeiros paulistas e lagunenses do gado vacum e muar que se reproduzia livremente nos campos de Viamão, em conseqüência da dissolução das estâncias missioneiras do Tape, no século XVII, foi um fator decisivo para a colonização da planície costeira e das pastagens naturais do interior.
A primeira fase da conquista do território correspondeu ao apresamento deste gado e a construção de currais. Em 1740, era concedida a primeira carta de sesmaria nos Campos de Viamão. Os sesmeiros ou estancieiros que se instalaram próximos ao Guaíba – no lugar conhecido como Porto de Viamão – utilizaram o rio como meio de comunicação com o Rio Grande e o Rio Pardo: Vilas militares e postos avançados da conquista do território.
Segundo Achylles Porto Alegre, o povoamento da cidade iniciou pelos terrenos que correspondem às atuais ruas Waschington Luis, Andradas, General Salustiano, Vasco Alves, Duque de Caxias, a antiga Beira do Guaíba até o Beco do Bragança (atual Marechal Floriano) e o Caminho Novo (atual Voluntários da Pátria).
Em 1778, são construídas as fortificações que tiveram um importante significado na organização do espaço urbano. O abastecimento de água era feito diretamente do Guaíba, inexistiam ruas calçadas, esgoto, limpeza pública ou iluminação. As primeiras ruas a receberem calçamento, chafarizes para abastecimento de água, limpeza, policiamento e iluminação de candeeiros a óleo de peixe foram a Rua da Graça e Rua da Praia (atual Andradas), Rua da Ponte e Rua do Cotovelo (atual Riachuelo), Rua da Igreja e Rua do Hospital (atual Duque de Caxias) em 1779.
Os becos tinham percurso acidentado, estreito e curto, não tinham a mesma estrutura das ruas principais, onde se localizavam os sobrados de pedra e cal. Ao contrário, os becos caracterizavam-se pelos casebres modestos de taipa e palha onde morava a população pobre composta de mascates, taverneiros, artesãos, marinheiros, carregadores, prostitutas e negros libertos.
Os negros, mesmo, em cativeiro conseguiam praticar seus rituais de obrigações aos Orixás, os libertos citados anteriormente se sobressaiam, nesta época, no resguardo de sua religiosidade mesmo em posição inferior na sociedade.
O povoado cresceu e seu novo status político exigiu construções mais duradouras. Trouxeram-se telhas e tijolos de laguna e importaram-se vidros; as primeiras olarias surgiram apenas no século XIX.
Em fins do séc. XVIII e inicio do séc. XIX, os “largos” eram por excelência, espaços de reunião e de atualização das sociabilidades publicas. Existiam os largos da Quitanda, dos Ferreiros, do Pelourinho e do Arsenal. As socialidades públicas, neste período, estavam ligadas as comemorações das festas religiosas. As festas do Divino, da Páscoa, da Quaresma e, principalmente, a dos Navegantes pelo caráter portuário de Porto Alegre. Nelas reunia-se toda a população, ricos e pobres, senhores e escravos. Tal reunião era característica da tradição católica portuguesa e açoriana, mas já aparecia mesclada com traços da cultura afro-brasileira dos negros acompanhando seus senhores.
Era no Largo da Quitanda, atual Praça da Alfândega, que se praticava o comércio, principalmente de amendoim, lenha, hortifrutigranjeiros, carnes e ovos. Foi neste ponto da margem do Guaíba que surgiu, em 1804, o primeiro trapiche para embarque e desembarque de mercadorias e pessoas. Em torno deste cais se reuniram os comerciantes e as quitandeiras com seus tabuleiros, na maior parte composta de negros, como assinalaria o viajante francês Saint-Hilaire, em 1820.
De acordo com as informações de pessoas antigas no meio do batuque, nesta época as “negras minas” que vendiam neste mercado, já tinham o assentamento de um Bará, para dar proteção e movimento nas quitandas. Esta tradição de assentar o Bará nos mercados vem da África, principalmente da região dos yorubás.
No ano de 1820, com o início da construção da Alfândega, as quitandeiras começaram a ser removidas para o Largo do Paraíso (atual praça XV de Novembro). Entretanto, como as resistências foram muitas, a Câmara permitiu que elas continuassem a ocupar o ângulo oeste do Largo da Quitanda, bem como os Largos do Paraíso e do pelourinho.
O Largo do Pelourinho, em frente à Igreja das Dores (1807), era o lugar de ritualização da ordem na sociedade colonial. Neste largo foi construído o pelourinho onde se açoitavam os escravos. Existiam outros na vila, mas sua localização tornou-se difícil de definir. Ao que tudo indica, o largo serviu ao comércio miúdo com a saída das quitandeiras do Largo da Quitanda.
Em 1814, Porto Alegre possuía seis mil habitantes e a Província 70 mil. Em 1822, a capital é elevada a categoria de cidade.
Em 1829, surgia o primeiro Código de Posturas Policiais para disciplinar a ocupação do espaço urbano; designavam-se lugares de coleta d’água, lavagem da roupa dos hospitais, despejos dos esgotos, lixo, etc. Em 1837, uma série de novas disposições procurava dar conta da situação de cerco da cidade. Vários artigos tratavam da questão do controle da mão-de-obra escrava que alcançava mais de 1/3 da população de Porto Alegre.
Em 1842, o Governador da Província Saturnino de Souza sente a necessidade de construir um mercado para organizar o comércio na capital, até então feito em barracas desordenadamente espalhadas entre o Largo da Alfândega e do Paraíso. O lugar escolhido foi o Largo do Paraíso, onde atualmente se encontra o Chalé da Praça XV. Construí-se também uma doca próxima (no lugar da atual Praça Parobé) com espaço para estacionamento de carretas e carroças, no sentido de facilitar o abastecimento do mercado.
O antigo Largo do Paraíso passa por um significativo processo de transformação. O primeiro mercado tornara-se pequeno para as exigências da cidade. Em 1865, o Conselho Municipal decide pela construção de outro, no alinhamento do Caminho Novo (o primeiro andar do atual Mercado Público). O novo mercado, inaugurado em 1869 tornou-se a maior obra arquitetônica da cidade, com 72 bancas internas e 80 externas. É neste Mercado que o famoso Príncipe Custódio “assentou” um Bará. A Mãe Jurema de Xangô, uma das mais antigas do estado, nos conta que bem antes de se falar no Príncipe Custódio, o pai de santo dela, Paulino de Oxalá, já mandava os filhos de santo, em saída de obrigações, levarem moedas no Bará que tinha assentado numa banca do Mercado Público. O mesmo comentário foi feito de Mãe Antonia do Bará, que faleceu aos 96 anos de idade no ano de 1998.
Outro antigo Pai de Santo chamado Silvio Brito (Bino de Ogum) informa que sua bisavó Maria Pinheiro da Silva, filha do Orixá Ogum, Yalorixá da Nação Ijexá, também fazia comentários a respeito do Bará que as “negras minas” tinham assentado, ainda nas bancas improvisadas, onde vendiam suas mercadorias.
Os africanos chegaram às terras gaúchas com os primeiros tropeiros. Mais tarde, chegaram aos milhares para trabalhar nas charqueadas, nas fazendas, nas residências. Seus descendentes juntamente com os descendentes de outros povos, aqui se miscigenaram, formando os mestiços, dando origem a população de nosso estado.
A Sociedade Libertadora, fundada em Porto Alegre no dia 29 de agosto de 1876, empenhou-se na libertação das crianças nascidas de mães escravas. Muitos jornais deixaram de anunciar a fuga de escravos e passaram a defender a sua libertação. Em 1833, foi criado o Centro Abolicionista.
Entre 12 e 18 de agosto de 1884, promoveu-se a Jornada Abolicionista: pessoas dedicadas à causa batiam de porta em porta pedindo a alforria dos escravos. No dia 7 de setembro de 1884, a Câmara Municipal declarou que em Porto Alegre não havia mais escravos.
Inicia-se uma nova luta pela sobrevivência deste povo sofrido. Muitos tiveram que comprar sua liberdade, trabalhando de graça para o patrão de um a cinco anos.
Os negros se aglomeraram por diversos locais da cidade. O principal foi o Campo do Bom Fim, que mais tarde passou a se chamar Campo da Redenção. Sem comida, roupa e remédio, que antes eram atribuições de seus donos iniciando um processo de marginalização. Os senhores deram baixa na coletoria, não pagaram mais impostos sobre os negros, mas continuavam a usá-los como escravos.
Surge a Colônia Africana, grande concentração de população negra e desvalida, que compreendia os bairros do Mont’Serrat, Rio Branco e parte do Bom Fim. O bairro Mont’Serrat ficou conhecido como “Bacia”, devido ao número expressivo de casas de religião, onde se praticavam os cultos de origem africana.
Como aconteceu com a maioria das populações de baixa renda, pouco a pouco estes primeiros habitantes da região foram afastados para bairros distantes, em função da valorização dos terrenos que eram mais próximos da área central.
Havia outros pontos da cidade, como o Areal da Baronesa e a Ilhota, que eram fortes núcleos de negros, ali se constituíram, pouco depois da escravatura. O bairro hoje é conhecido como Cidade Baixa onde compreende as áreas antes denominadas de: Arraial da Baronesa, Emboscadas, Areal da Baronesa. No século XIX era denominado Arraial da Baronesa, por alusão a uma grande extensão territorial de propriedade da dona Maria Emília da Silva Pereira, Baronesa do Gravataí. Faziam parte da área, também, propriedades rurais, que usavam mão de obra escrava. Em fuga os escravos se escondiam nos matos que faziam parte do arraial, sendo “batizado” de território das “Emboscadas”.
Após um incêndio que destruiu a propriedade, em 1879, a Baronesa loteou e vendeu suas terras. O território passa ser habitado principalmente por negros. Tendo em vista a quantidade de areia na região, o local passa se chamar “Areal da Baronesa”.
A imprensa falava mal do arrabalde, contando histórias de desordens que ali ocorreram. No território tinha jogos de maneira geral, cancha de osso, além da prostituição, e falava-se muito sobre valentões invencíveis que enfrentavam os “ratos brancos” da Polícia Municipal.
O cronista Aquiles de Porto Alegre, que conheceu a zona, ainda antes de ser loteada, informa que era um “matagal cerradíssimo onde os negros fugidos iam esconder-se de seus cruéis e desumanos senhores”. O escravo que se revoltava contra tirania de seu dono procurava aquele lugar para esconderijo, por que a mata era espessa, e eles encontravam ali para alimentar-se, o araçá, a cereja, a pitanga, o maracujá, o joá, o ananás e tantas outras frutas silvestres...” ainda conforme Aquiles, a população porto-alegrense também chamava esse arrabalde de “Banda Oriental”, pelas freqüentes desordens que ali se davam, “principalmente no Beco da Preta, que era um dos seus tantos corredores escuros”.
O Areal da Baronesa ficou muito famoso por ser reduto de grandes carnavalescos da cidade. Neste local o negro fazia os melhores carnavais da cidade. Não diferente da Colônia Africana, a baronesa foi vencida pela especulação imobiliária na década de 60, e os negros foram empurrados para a periferia da cidade.
Junto com o Areal da Baronesa, outro local insalubre a “Ilhota” formava uma espécie de cinturão negro e pobre na cidade de Porto Alegre, nesta área ocorriam freqüentes inundações. Destes dois territórios, saíram inúmeros músicos e compositores, solistas e jogadores de futebol que ficaram nacionalmente conhecidos, como Lupicínio Rodrigues e o jogador Tesourinha.
Mesmo ocupada por moradores muito pobres a “Ilhota” deixou sua marca na memória da cidade, sobretudo nas crônicas de carnaval, samba e batuque.
No início da década de 60 e intensificações nos anos 70 a população de baixa renda que residia nestas vilas próximas ao centro foram transferidas para a Restinga, hoje um dos maiores bairros da cidade de Porto Alegre.
Mesmo com todas as dificuldades, o negro conseguiu manter o culto aos Orixás.
Hoje no estado do Rio Grande do Sul, existem mais de 70 mil casas que seguem as tradições de origem africana.
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