segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Processo Escatológico no Batuque do Rio Grande do Sul




GBOBO OHUN TI A BÀ SE NI AYÉ L'A O KUNLẸ̀ RÒ NI Ọ̀RUN:
PROCESSO ESCATOLÓGICO NO BATUQUE DO RIO GRANDE DO SUL

Hendrix A.A. Silveira

Resumo
Todas as religiões possuem uma complexidade teológica. E toda teologia pressupõe estudos a respeito de três elementos fundantes nas crenças religiosas: a teogonia (origem das divindades), a cosmogonia (origem do universo) e a escatologia (fim último de todas as coisas). Este artigo pretende expôr alguns elementos da escatologia nas religiões de matriz africana com enfoque no Batuque do Rio Grande do Sul, apresentando dogmas, doutrinas, liturgias e divindades relacionadas com o tema, a partir de uma epistemologia construída sobre um diálogo entre elementos teóricos da Filosofia, da Teologia e da História das Religiões.

Introdução
O presente trabalho tem como objetivo esclarecer um aspecto específico da teologia  yorùbá que explica o processo escatológico segundo os conceitos desse povo. Para compreendermos efetivamente este processo, dissertarei sobre o seu conhecimento sobre Deus, o papel do texto sagrado de  Ifá, as concepções sobre morte, a divindade escatológica, os rituais fúnebres e o destino final das pessoas.

A filosofia yorùbá está sustentada no tripé: riqueza, filhos e vida longa. A vida longa é o mais importante, pois possibilita as outras duas. De fato a vida é entendida sempre como boa, uma dádiva de Deus, por isso os yorùbá entendem que a vida é o bem mais precioso que temos e viver bem significa seguir os valores civilizatórios legados pelos antepassados que são rememorados, de  tempos em tempos, em rituais específicos. Foram os antepassados que deixaram para seus descendentes os princípios éticos e morais, assim como o conhecimento da cultura religiosa que serve como cimento na construção das suas vidas.

A vida tem que ser vivida na sua total plenitude. De fato a religião yorùbá é completamente sensitiva: o tato, o olfato, a visão, a audição e o paladar estão presentes em todos os ritos, seja de nascimentos, casamentos, iniciações ou morte.

A vida é sempre celebrada.

Para o ocidental bom é estar morto, pois sempre vê a vida como algo difícil, o sofrimento é sempre visto como inerente à vida e que o melhor lugar para se estar é perto de Deus, ou seja, morto.

As religiões de matriz africana foram amplamente estudadas por antropólogos e etnólogos que não contribuíram completamente para o desenvolvimento do ser humano que vivencia essas religiões.

Muitas vezes esses estudos serviram para receber seus títulos de mestrado e doutorado numa perspectiva “desde fora para dentro”.

                                               
As palavras em língua  yorùbá que figuram neste trabalho estão escritos segundo a obra  Uma abordagem moderna ao yorùbá (Edição do Autor, 2011), do linguista nigeriano Gideon Babalọlá Ìdòwú. Utilizamos a ortografia moderna a fim de tornar mais compreensível a rica tradição oral preservada no Batuque. A língua yorùbá é tonal e palavras idênticas porém pronunciadas de forma diferente se referem a coisas diferentes.

Por exemplo: owó (dinheiro), òwò (negócio), ọwọ́ (mão), ọwọ̀ (vassoura),  Ọ̀wọ̀ (nome de uma cidade nigeriana).

O alfabeto yorùbá é constituído por 25 letras: A B D E Ẹ F G GB H I J K L M N O Ọ P R S Ṣ T U W Y. Consoantes e vogais têm, em geral, o mesmo valor que em português, porém a vogal  E pronuncia-se sempre fechada, como em “ema”, a Ẹ é sempre aberta como em “Eva”. G tem som gutural como em “gado”, e nunca como J.

GB é explosivo. H é sempre pronunciado e tem som aspirado como em “hell” (inglês). A vogal O é fechado, como em “ovo” e  Ọ é aberto como em “pó”. R tem um som brando como em “rest” (inglês), nunca como RR.  A consoante S é sibilante como em “sistema” e  Ṣ é chiada como em “xícara” ou “chimarrão”. W tem som de U e Y tem som de I. Não existem as consoantes C, Q, V, X e Z.

A indicação do tom das sílabas é feita pela acentuação: grave indica tom baixo (dó), sem acento é tom médio (ré) e agudo indica tom alto (mi).

Os conceitos “desde fora para dentro” e “desde dentro para fora” foram desenvolvidos por Juana Elbein dos Santos (Vozes, 1986) como método para os entendimentos das vivências afroreligiosas. Santos define que os estudos acadêmicos costumam ser “desde fora para dentro”.

Modernamente os teólogos apresentam novas soluções para os problemas escatológicos, fazendo da salvação individual e coletiva não objeto de uma espera passiva, mas de uma esperança ativa, em que a plenitude do desenvolvimento humano realizam um encontro espiritual com Deus. Neste ínterim surgem vivenciadores das religiões de matriz africana que levam até a academia os seus estudos na perspectiva “desde dentro para fora”.

São antropólogos, etnólogos, sociólogos, historiadores e até teólogos que, por serem iniciados, podem retransmitir um saber mantido apenas no interior de seu sistema de crenças.

Este estudo busca reconstruir epistemologicamente uma teologia africana que fundamenta os ritos funerários do Batuque. As obras de José Beniste e Juana Elbein dos Santos vêm ao encontro dessa proposta já que são verdadeiros tratados teológicos, ainda que a formação dos autores não contemple esta forma de entender as relações entre Deus e o homem. Beniste e Santos são acadêmicos (historiador e etnóloga, respectivamente) e iniciados no culto aos  Òrìṣà, por isso suas obras trazem elementos constitutivos da vivência religiosa aliada à metodologia científica.

O livro “Ọ̀run-Àiyé” (Bertrand Brasil, 2008) de José Beniste é a obra que mais usei neste trabalho devido a riqueza de informações resultantes de profundas pesquisas do autor. Já “Os nagô e a morte” (Vozes, 1986) é a tese de doutorado em etnologia pela Sorbonne de Juana Elbein dos Santos. Embora este trabalho seja criticado por alguns antropólogos, as informações trazidas nele são de grande aporte para entendimentos teológicos sobre as práticas afro-brasileiras. Além destes dois autores também utilizarei outros que estão arrolados nas referências bibliográficas.

O termo escatologia está sendo empregado aqui no sentido de crença ou doutrina teológica a respeito do destino do homem após à morte (ESCATOLOGIA, 1999, CD).

A dimensão escatológica nas religiões de matriz africana.

A religião tradicional africana, de forma geral, não trata de uma escatologia onde os estudiosos costumam trazer conceitos, muitas vezes eurocêntricos, destituindo a dinâmica da cosmovisão empregada pelos próprios vivenciadores. O contrário seria se inserir na vivência afro-religiosa permitindo, assim, uma experiência viva, codificada internamente, capaz de transcender as expectativas do estudo meramente bibliográfico. É a visão “desde dentro para fora”.

A escatologia  yorùbá é sempre de cunho individual, ou seja, para onde vamos ao morrermos. Essa escatologia é de cunho dialético, já que é fundamentada sobre raciocínios sobre a filosofia e a teologia.

Para os yorùbá a existência transcorre simultaneamente em dois planos: no Ayé e no Ọ̀run. O Ayé é a Terra, o mundo material, imanente, onde vivem os  araAyé, os seres naturais.  Ọ̀run é o espaço mítico sobrenatural, imaterial,  transcendente, onde vivem os ara-Ọ̀run, os seres sobrenaturais.

Quanto ao Ọ̀run, Juana dos Santos é insistente:
[…] o espaço ọ̀ run compreende simultaneamente todo o do àiyé, terra e céu inclusos, e conseqüentemente todas as entidades sobrenaturais, quer elas sejam associadas ao ar, à terra ou às águas, e que todas são invocadas e surgem da terra. É assim que os ara-ọ̀ run são também chamados irúnmalẹ̀ [...]

É no  Ọ̀run que se encontra Olódùmarè (ou  Eledùmarè, Edùmarè,  Ọlọ́run, Ọba-Ọ̀run), o Ser Supremo dos  yorùbá e detentor dos poderes que possibilitam e regulam toda a existência, tanto no Ọ̀run como no Ayé. É de Olódùmarè que vem o àṣẹ, a força imaterial divina, poder de criação e transformação de todas as coisas.

Entre os seus atributos temos o de Criador, pois tudo aquilo que existe, inclusive os Òrìṣà, todas as formas de espíritos, todos os seres viventes, e o próprio trabalho da criação da Terra, têm sua origem nEle; o de rei, pois na concepção antropomórfica de Deus, os  yorùbá o veem como um rei com majestade única e incomparável; o de Juiz, pois todos os atos dos homens e até dos  Òrìṣà não escapam ao seu julgamento; é onipotente, pois para Ele nada é impossível; é imortal, pois a morte é criação sua e não pode submeter-lhe; é único, por isso não existe formas de culto, imagens ou pinturas, pois não pode ser comparado; é onisciente; é transcendente; é entendido como sagrado tão ritual como eticamente.

Os  Òrìṣà, pelo contrário, não são deuses, pois não possuem essas qualidades. Os Òrìṣà foram criados por Olódùmarè e ganharam dEle seus poderes, assim cada Òrìṣà é entendido como uma manifestação de Olódùmarè, mas não Ele mesmo. Em função disso podemos seguramente classificar a religião  yorùbá como monoteísta.
                                               
Cada Òrìṣà tem demandas específicas e receberam de Olódùmarè poderes para realizá-las.

Escatologicamente três Òrìṣà têm papeis importantes: Ọ̀rúnmìlà, Ikú e Ọya.

Assim como os judeus, os  yorùbá têm sua história centrada em narrativas cosmogônicas. Estas narrativas estão registradas no Ifá.

Segundo a tradição dos yorùbá, Ifá é um texto oral sagrado que narra toda a história da criação da Terra, das divindades e dos seres humanos.  Ifá é composto por dezesseis Odù. Cada Odù representa um capítulo da narrativa mitológica que subdividem-se em dezesseis  ìtàn (mitos) que, por sua vez, subdividem-se em dezesseis ẹsẹ (versos), totalizando 4096 versos. Cada verso conta uma história que serve para explicar a realidade, a sociedade, a ritualística, a teologia e a filosofia iorubana.

O conhecimento de  Ifá tem origem na divindade chamada  Ọ̀rúnmìlà, que carrega vários títulos como: Gbayé gbọ̀run (aquele que vive tanto na Terra como no Céu), Alàtùúnṣe Ayé (Aquele que coloca o mundo em ordem), Àgbọnnírẹ̀ gún (O que nunca é esquecido),  Ẹlẹ́rìí Ìpín (Testemunha da sorte das pessoas),  Ọ mọran (O conhecedor de todos os segredos) e O pitan Ayé (O grande historiador do mundo).

Wándé Abímbólá, citado por Adékọ̀yà, diz que “Ifá, também conhecido como Ọ̀rúnmìlà, é o deus yorùbá da sabedoria. Ele é a principal divindade do povo yorùbá.

Acredita-se que Ele é o grande ministro de Olódùmarè (Deus todo-poderoso) enviado do Céu para Terra para desenvolver funções específicas.”

Ọ̀rúnmìlà é a testemunha de Olódùmarè. Ele estava na criação das coisas do mundo e dos seres humanos, por isso Ele é regente do mundo-além e do mundo dos homens, ciente dos segredos, obstáculos e soluções dos malefícios humanos. É sempre referido como homem muito sábio, alguém que era consultado pelo povo e ajudava a todos que o procurava. Por isso, quando se retira da Terra para viver no Ọ̀run,  Ọ̀rúnmìlà deixa para  seus filhos dezesseis nozes-de-cola com os quais poderão consultá-lo e assim perpetuar esse conhecimento Seus filhos se tornaram bàbáláwo, os “pais do segredo”, e se perpetuaram até os dias de hoje
                                             
Ọ̀rúnmìlà também é entendido como a divindade da História, pois para os yorùbás mito e história se confundem. Os sacerdotes de  Ọ̀rúnmìlà sabem de cor todos os 4096 versos de Ifá tornando-se os detentores de toda a cultura yorùbá.

Outra importante divindade escatológica é a morte, pois, segundo Beniste, “é visto como um agente criado por Olódùmarè para remover as pessoas cujo tempo na Terra tenha terminado.”

Ìkú, a Morte, é uma divindade masculina cuja lógica é para pessoas velhas, motivo pelo qual a morte de um jovem é visto como uma tragédia.

Um mito revela a origem de seu nefasto ofício:

No dia em que a mãe da morte foi espancada no mercado de Ejìgbòmẹkùn, a Morte ouviu e gritou alto enfurecida.

A Morte fez do elefante a esposa de seu cavalo. Ele fez do búfalo sua  corda. Fez do escorpião o seu esporão bem firme pronto para a luta.

Este evento fez com que  Ìkú matasse indiscriminadamente criando grande caos no mundo. Os homens consultaram  Ifá que lhes ensinou a fazer oferendas  para acalmar a Morte. Assim foi feito e a ordem se estabeleceu novamente.  Ìkú então se dedicou a levar apenas aqueles que já viveram o bastante na Terra.

Em outro mito, Ìkú ganha sua missão de Olódùmarè por ter sido o Òrìṣà que deu a Òṣàlá a lama primordial para fazer o homem:

Quando  Olódùmarè ordenou que  Òṣàlá criasse os seres humanos, pediu para todos os  Òrìṣà que trouxessem o material que melhor servisse.

Trouxeram madeira, pedra, água, areia, mas nada resolvia.  Ìkú pediu para que Nàná cedesse o elemento de seus domínios, a lama primordial, para que Òṣàlá fizesse os seres humanos. Ela concordou desde que Ele ficasse incumbido de trazer a lama de volta ao final da vida de cada indivíduo.

Assim se sucedeu: Òṣàlá cria os seres humanos da lama primordial e Ìkú os trata de devolver para Nàná.

Então quando a pessoa é tocada por Ìkú, seu corpo perece e é restituído à natureza ao ser enterrado. O seu “corpo espiritual”, por outro lado, é composto de várias unidades reunidas e  que terão um destino próprio cada uma: Ẹ̀mí, o sopro divino, abandona o corpo retornando para Olódùmarè; imediatamente Bara, o Òrìṣà que permite a mobilidade do corpo logo o deixa; o Òrí, o princípio de individualidade da pessoa, perece com ela, a acompanha na morte, juntamente com seu destino, ou como diz o teólogo Jayro Pereira de Jesus, o seu plano mítico-social (com. Pes.); o Òrìṣà pessoal, que define a origem mítica da pessoa, retorna ao Òrìṣà geral, do qual é uma parte infinitésima; a alma propriamente dita é levada por Ọya ao Ọ̀run, que poderá retornar no seio familiar, continuamente, através do àtúnwa (É esta alma que será cultuada como Égún individualizado, espírito de antepassado familiar, se foi uma pessoa que mereça este reconhecimento. Senão fará parte do culto coletivo aos ancestrais. A quem não é feito os rituais prescritos pode se tornar Ápáráká, espíritos perturbadores.).

Divindade feminina,  Ọya  está intimamente relacionada com as almas dos mortos – os Égún.

Ela carrega um ìrùkéré, um pequeno espanta-moscas feito com rabo de cavalo que serve para controlá-los. É a divindade escatológica por excelência, pois é quem leva as almas dos mortos para um dos nove espaços de Ọ̀run.

Ọya, também chamada de Yánsàn, é uma divindade brava e guerreira, ao mesmo tempo é sensual e amorosa e possui uma grande devoção à família. Está relacionada com a bravura do búfalo, animal que, por vezes, os mitos narram em que se transforma, e com os ventos e tempestades, representações de sua fúria.

Alguns mitos narram seu poder sobre os Égún. Em uma delas Ọya é esposa de Ògún, o Òrìṣà ferreiro. Ela atiça o braseiro que esquenta o metal fazendo um som melodioso que atraiu um Égún que vinha passando, o dominando.

Noutro mito, Ọdẹ Odulẹkẹ – o grande chefe caçador – encontrou uma órfã Nupe no mercado principal de Kétu, seu reino. A garotinha estrangeira parecia uma cabrita levada. Odulẹkẹ, emocionado, resolveu adotá-la, dando-lhe o nome de Ọya: ligeira, rápida, em língua  yorùbá. Passou-se o tempo e o chefe caçador ensinou a filha tudo o que sabia de feitiçaria, caçadas e estratégias de guerra, exercitando-a na generosidade e no gosto pela arte. Um dia Ìkú levou o grande Ọdẹ, para a tristeza de Ọya, a qual durante sete dias e sete noites, cantou e dançou em homenagem àquele que amara tanto. Ela reuniu as ferramentas de caça de Odulẹkẹ, cozinhou as iguarias de que ela mais gostava, entoou cânticos os mais significativos em homenagem ao pai, dançando durante sete noites, na companhia de seus colegas de caça, de todos os amigos, que também dançaram, cantaram e celebraram a memória de um bravo; o grande provedor da aldeia. Durante o  àjèjé (vigília), os amigos confraternizaram-se e os desafetos congraçaram-se. Na última noite, os celebrantes reuniram todos os pertences, as comidas e ferramentas do Ọdẹ e foram depositar o “carrego” no pé de um Iróko, a árvore Òrìṣà, nas profundezas da mata.
                                               
Olódùmarè, inspirado pela dedicação de  Ọya, lhe concedeu o título de Rainha dos Espíritos, ficando com a responsabilidade de atravessar a alma do falecido entre os nove espaços do Ọ̀run. Assim Ọdẹ Odulẹkẹ se tornou o primeiro ancestral a ser cultuado, sendo chamado de Èsá Akèrán. E o ritual criado por Ọya foi o primeiro Aròsún realizado.

Aròsún é o nome dado aos rituais fúnebres no Batuque, religião de matriz africana vivenciada no Rio Grande do Sul. Palavra  yorùbá que é a contração de duas outras: ara (corpo) e òsùn (sono). Aròsún significa o “corpo que dorme”, pois para os  yorùbás “o sono é primo da morte”. Os bantus, que deram origem aos chamados candomblés de  Angola, celebram o  Mukondo e os Jejes, o  sirrum ou azeri, também chamado de “tambor de choro” no Tambor de Mina maranhense, em cerimônias muito semelhantes. Nos rituais de passagem nas religiões de matriz africana, costumam-se entoar cantigas em homenagem aos ancestrais de todos as Nações. No Candomblé Kétu o nome dado é àṣẹ̀ṣẹ̀, corruptela de àjèjè, e o primeiro a ser homenageado nesta liturgia é Ọdẹ.

O Aròsún é uma cerimônia na qual os iniciados dançam, cantam, comem e bebem. A liturgia é pública e os visitantes são convidados para a partilha das iguarias. O traje branco é obrigatório. A cor branca é utilizada nas celebrações de nascimento e transformação, sendo necessária nos ritos de passagem de todas as Nações.

Os rituais tem início no dia de falecimento do iniciado. O corpo é velado no terreiro. As pessoas dançam e cantam em homenagem ao falecido; balançam seus braços para frente e para trás indicando que todos estão passando vivos por aquele momento. Depois sai o cortejo fúnebre com familiares pegando o caixão e balançando, para frente e para trás, um movimento que simboliza o pertencimento tanto a este quanto ao outro mundo.

No sexto dia são feitos os sacrifícios rituais, entoa-se cânticos, faz-se oferendas e come-se o “arroz com galinha”, prato proibido nos outros dias, mas propiciatório nesses rituais. Ao sétimo dia são entoados os cânticos sagrados novamente. Prepara-se um banquete que é refestelado por todos. À ponta da mesa ninguém fica, pois é o lugar do falecido que, acredita-se, está ali. Após dança-se em círculo e alguns  Òrìṣà se manifestam em seus iniciados. Neste rito específico os Òrìṣà se manifestam silenciosamente, exceto  Ọya que faz ecoar sua gargalhada visceral avisando aos quatro cantos da Terra que Ela está presente. Ọya veio buscar a alma do morto.
                                                
No final da liturgia, todos os implementos que pertenciam ao falecido, assim como as comidas de que gostava e as oferendas são reunidas num carrego que será depositado no mato. O mato é um espaço sagrado que também está relacionado com os ancestrais.

Ọya carrega a alma do morto para o  Ọ̀run Àsàlú, por onde  Olódùmarè julgará seus atos e seu caráter. Na verdade esse julgamento dura todo o tempo de vida da pessoa na Terra. No  Ọ̀run Àsàlú Olódùmarè dará seu veredito final absolvendo ou condenando a pessoa.

Caso a pessoa seja absolvida irá para um dos bons espaços do Ọ̀run: Ọ̀run Rere, o bom lugar para aqueles que foram bons durante a vida; Ọ̀run Àlàáfíà, o local de paz e tranquilidade; Ọ̀run Funfun, espaço do branco e da pureza; ou Ọ̀run Bàbá Ẹni onde se encontrará com seus ancestrais. Mas se a pessoa for condenada seu destino poderá ser o Ọ̀run Afẹ́fẹ́, local onde os espíritos permanecem até tudo ser corrigido e onde ficarão até renascerem; Ọ̀run Àpàádì, espaço dos “cacos”, do lixo celestial, das  coisas quebradas e impossíveis de reparar e de serem restituídas à vida terrestre através do renascimento; ou Ọ̀run Burúkú, o mal espaço, quente como pimenta, destinado às pessoas más.

No  Ọ̀run Àkàsò os espíritos aguardam o regresso ao mundo através do renascimento.

Beniste define àtúnwa como reencarnação, mas não me parece ser este o conceito correto. O conceito de reencarnação parece significar que uma consciência indivisível pula de corpo em corpo, acumulando saberes e experiências, com um  propósito definido que para os espíritas é a evolução e para os hindus é o nirvana.

Mas na concepção  yorùbá do ser, a pessoa tem sua individualidade única e completamente presa a sua existência. Com a morte a sua individualidade também  morre.
                                               
A alma, no  Ọ̀run, se divide, ficando uma parte no  Ọ̀run que é sempre relembrada nos rituais aos antepassados. Outra parte renasce, pois, mesmo sendo a alma de uma antepassado, ganhará novo plano mítico-social, novo destino, novo Ẹ̀mí, Bara novamente lhe propicia o movimento, uma nova vida completamente diferente e indiferente àquela anterior. Ninguém traz nada da vida anterior para esta, portanto os conceitos espíritas de carma e a “lei da causa e efeito” que implicam os reecarnados não se aplicam à cosmovisão yorùbá.

Estar vivo é a motivação para os yorùbá. A morte é enfadonha, por isso nos apressamos para retornar a vida, pois bom é estar vivo.

Considerações finais
A cosmovisão yorùbá e a ocidental cristã sobre Deus são muito assimétricas.
Deus, para os  yorùbá, age no mundo indiretamente, através dos  Òrìṣà.
Especialmente três têm posição destacada em sua escatologia: Ọ̀rúnmìlà, Ikú e Ọya.
O primeiro determina a forma dos ritos e como as pessoas devem se portar durante a vida; o segundo determina o fim do ser vivente, conclui seu  tempo na Terra, é quem lhe abre as portas para a vida póstuma garantindo sua continuidade; a terceira é a guia entre os mundos, que nos garante uma passagem tranquila entre eles.
Uma vez do “outro lado”, a pessoa pode ser direcionada para um dos quatro bons espaços ou dos dois maus espaços. O que determinará isso é o comportamento em vida da pessoa. Isto promove na pessoa a ideia de que deve se portar bem em sociedade, constrói no ser humano um sentimento de cidadania, civilização, respeito ao próximo, ao coletivo, à toda humanidade, enfim. Não é a toa que a expressão em língua nativa gbobo ohun ti a bà se ni Ayé l'a o kunlẹ̀ rò ni Ọ̀run significa: todas as coisas que fazemos na Terra damos conta de joelhos no Ọ̀run.
Podemos observar neste pequeno estudo que os ritos funerários do Batuque são de grande importância para esta religião. O falecimento de um adepto requer ritos específicos que garantirão à alma do morto um trânsito eficiente do  Ayé ao Ọ̀run garantindo, assim, o retorno do iniciado ao Ayé num ciclo infindável.



* Este artigo é uma revisão de outro produzido para a disciplina de História das Religiões I,
ministrada pelo Prof. Ricardo Arthur Fitz, na Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), onde concluí
minha graduação em História.
** Hendrix Alessandro Anzorena Silveira: Mestrando em Teologia e História (PPG/EST) e Licenciado
em História (FAPA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Integrante do GT História das Religiões e Religiosidades – ANPUH/RS e Bàbálórìṣà do
Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre.
CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, São Leopoldo.
Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 1, 2012.  | p.509-519


Referências
                                               
17 Semelhante aos conceitos de Kha e Bha na religião Egípcia.CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, São Leopoldo.
Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 1, 2012.  | p.509-519
519
ADÉKỌ̀YÀ, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: tradição oral e história. Terceira Imagem:
São Paulo, 1999.
BENISTE, José.  Ọ̀run-Àiyé: o encontro de dois mundos: o sistema de
relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra. 6ª ed. Bertrand  Brasil: Rio de
Janeiro, 2008.
ESCATOLOGIA.  Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. Rio de
Janeiro, 1999. 1 CD-ROM. Produzido por Lexikon Informática Ltda.
ÌDÒWÙ, Gideon Babalọlá. Uma abordagem moderna ao yorùbá (nagô): gramática,
exercícios, minidicionário. 2ª ed. Porto Alegre: do Autor, 2011.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
______. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. Companhia das Letras: São
Paulo, 2005.
SANTOS, Juana Elbein dos.  Os nagô e a morte: pàdé,  àṣẹ̀ṣẹ̀ e o culto égún na
Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.

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