Este Blog tem como proposta de sua criação a utilização para auto-ajuda, estudos, pesquisas e reflexões da história, teologia, filosofia africana e afro-brasileira, trazidas através de crenças, mitos, cultos, lendas e religiosidade, etc... "TODO ESTUDO É BEM VINDO E CONHECIMENTO NÃO OCUPA ESPAÇO."
terça-feira, 5 de novembro de 2013
História contada pelo Pai João Carlos de Odé.
História contada pelo Pai JOÃO
CARLOS DE ODÉ.
Naquele verão ensolarado de
1962, as coisas que já não andavam bem na vila São José, pioraram com a notícia
do falecimento de Mãe Antoninha de Yemanjá.
Mãe Toninha de
Yemanjá era tudo que restava dos mais antigos. Sua perda foi irreparável e
aquela data marcaria uma nova era dentro do batuque.
Ninguém tinha a mínima idéia sobre
quem o havia assentado, mas sabíamos que aquele Bará Lodê tinha pra lá de cem
anos de feitura.
No silêncio daquele enorme salão o único som que se ouvia era o dos búzios
sendo jogados sobre a mesa, todos ansiosos pelo veredicto final.
Foi quando o negro Ademar de
Xangô saltou da cadeira aos brados: - Comigo é que este homem não vai ficar!
Mas não vai mesmo! A negra Paula de Oxum, esposa do negrão, agarrou o marido
pelo braço e ponderou: - Tenha paciência, Ademar, o José ainda não disse o nome
do escolhido.
Dentro dos fundamentos da nação Ijexá, há um que reza que
o Bará Lodê não pertence ao Orumalé, ou seja, ele não é despachado no caso de
morte do dono do templo. Seu assentamento é feito para proteger na rua os
filhos daquela casa. É ele quem decide com qual dos filhos da casa vai ficar
para dar continuidade a sua permanência na terra. Esse era o temor do negro
Ademar, ter que sustentar o Bará pelo resto de sua vida. Quem decide é o homem,
e decidiu, tá resolvido, não há lugar para explicações ou negativas, tem que
assumir. E foi assim que terminou aquela reunião.
O negro Ademar não voltou
mais aquela casa, ou como ele mesmo dizia: - Não perdi nada lá para fazer
visitas. Os irmãos mais velhos saíram revoltados com o despautério do negrão.
Dona Beti de Ossanhã, uma das filhas mais velhas, buscava uma solução mais
plausível: - Olha, gente, a Mãe não sentou Lodê pra mim, bem que eu poderia ser
a escolhida e ficaria tudo de bom tamanho. Mas ela não fora a escolhida e
qualquer decisão entre os humanos seria contrária a do Orixás. Bem, o que fora
dito estava escrito, e o juramentado teria que ser respeitado sob pena de ter a
revolta do Bará. E quem se atreveria a desobedecer ao homem? Quem? Eu? Eu fora!
Já tô tirando o meu da reta. O negro Ademar fincou pé, foi irredutível, não
levaria o Bará para casa de jeito nenhum. Que bom se fosse assim! Para quem
pensa que no batuque se governa está muito enganado, aqui quem manda são os
Orixás, aos humanos cabe obedecer, e quem pensa ao contrário terá que arcar com
suas responsabilidades. É botar para ver. E o negrão botara! Agora era esperar
pelo resultado.
Bem, isso é quizila grande e todos que ficaram
sabendo se afastaram do caso, uns por medo, outros desejando o acontecido só
para ver a rasteira que o negrão Ademar de Xangô levaria do Lodê. O carro do
negrão era uma Sinca três andorinhas, coisa linda de se ver, flamante, comprado
com parte do dinheiro ganho de uma herança. Embarcou nele e foi com tudo na
direção da casa de Mãe Toninha, decidido a despachar o Lodê. A estrada que liga
Viamão e Porto Alegre era sem asfalto, terra solta e curvas perigosas. Estava
um dia chuvoso e como ele tinha pressa, imprimiu velocidade. Encontrou uma
curva de areão solto... E foi aquilo tudo de se perder, encontrar uma árvore,
destruir o carro e ter a cara desfigurada pela trombada. Fui visitá-lo na Santa
Casa de Misericórdia onde o encontrei em estado lastimável, todo quebrado,
enfaixado, cheio de curativos, gemendo pela dor, mas irredutível: - Ele me
paga, assim que eu sair daqui vai ter pro lombo dele. - Ele quem? Pergunto,
mesmo sabendo a resposta. - Aquele Lodê, foi ele quem me atingiu naquela curva.
Antes de capotar eu ainda ouvi a risada daquele infeliz. Bem, há quem tem
cabeça pra estas quizilas, eu que não tenho... Debandei.
Recuperado, lá vai o negrão
Ademar de Xangô cumprir o prometido: despachar o Lodê. Para não perder tempo,
já que tinha pressa, avançou, meteu o pé na porta da casa do homem e foi com
tudo pra cima. Sacou de dentro da casa o alguidar com o assentamento do homem e
enfiou tudo dentro de um saco que botou sobre o ombro e saiu. Seu destino: o
cemitério local onde fora sepultada Mãe Toninha de Yemanjá. Lá chegando, entrou
como quem chega na casa da sogra. Foi quando ouviu alguém lhe chamando,
voltou-se para ver quem era e levou um tabefe na cara que o jogou para trás.
Era Mãe Toninha, sua Mãe de Santo, que aproveitando, enfiou-lhe mais dois ou
três catiripapos e, para não perder a conta e aprumar o negrão, sapecou de
pronto: - Onde tua vais com este Bará Lodê, negro infeliz? O negrão Ademar, no
maior medo, tentando se desculpar, soltou o choro e aos gritos clamou: - Não me
bate, Mãezinha, não me bate. Me perdoa, eu prometo, não faço mais. - Então,
infeliz, eu te deixo um Orixá pra cuidar da tua família religiosa e tu me
afrontas querendo despachá-lo? Onde eu estou que não te levo junto? O negrão
deu de mão no Bará e retornou por onde veio, só que desta vez correndo. Passou
na frente da casa de sua Mãe e foi depositar o Lodê junto com o seu. - Agora tu
tens um companheiro pra prosear. Os Orixás nos dão lições valiosas, se fôssemos
inteligentes, até aprenderíamos. Mas, todos sabiam que aquele negro era tinhoso
e que não desistiria tão fácil. Com a nova morada, o Bará Lodê se aquietou e
tudo voltou a calmaria, afinal, as coisas estavam como ele ordenara, tudo
dentro dos conformes. Nas festas dos batuques o povo do Santo, só para
embaraçar o negrão, perguntava aos risos. - E aí, negrão, como vai o compadre?
Povo sem respeito, desaforados. E lá vinha a sua resposta: -Vai bem, obrigado,
só que se depender de mim, na maior seca. Isso significava sem achôro, sem ecó,
sem frente, sem o trato que requer um Orixá. Ele pensava que na penúria iria
dobrar a força do homem: “Sem forças ele não pode me atingir, afinal, eu já
tenho Bará assentado, pra que vou tratar dois quando preciso apenas de um?”
Assim ele achava, mas o homem pensava diferente. Os Filhos de Santo daquela casa
foram debandando, os clientes desapareceram da porta do negrão e a miséria
chegou para ficar. E o negrão nada de mudar. Quando o café da manhã passou a
ser jacuba, a coisa encrespou, desta vez foi a mulher que entrou na parada: -
Tchê, negrão... Agora com tuas loucuras tu botou pra toda a nossa família, mas
nós não estamos juntos nesta jogada, amanhã mesmo eu me mudo com as crianças
para a casa da minha mãe. Com isso, tudo mudou de figura e o negro Ademar se
sentiu mais apertado que rato em guampa. Naquela noite, o negrão se postou na
frente da casa do Bará Lodê a dizer desaforos: - Onde se viu um Orixá que está
morando de favor em minha casa se postar diante do portão a correr meus
clientes, Filhos de Santo e amigos? Mas é muito despautério deste homem. Irritado
com tantas dificuldades e desiludido com os ditames dos Orixás, largou o
serviço e passou a beber toda a cachaça do mundo. Mas, o que mais o deixava
louco de raiva era ver de madrugada os dois Barás e o Ogum Avagã chegarem em
casa as gargalhadas, no maior porre. - Mas estes exus querem me deixar louco.
Eu na maior penúria e eles fazendo farra. Deixa estar, amanhã acabo com esta
brincadeira. Na noite seguinte deu de mão num litro de gasolina, derramou sobre
a casa do Bará e tocou fogo, saiu dali rindo, feliz com a vingança. Para
comemorar tal façanha, tomou um porre e foi dormir. De repente, viu três
negrões entrarem em sua casa e se acomodarem como se donos fossem. No começo
ele custou em aceitar aquilo, mas, estando morando sozinho naquele casebre, topou
a parceria. Agora ele não sofria de solidão, tinha amigos com quem partilhar
sua miséria e dificuldades. Foram noites de farras e risadas, conversas e mais
conversas que varavam a madrugada, confidências que só os amigos dividem,
cumplicidade e respeito pela vida um do outro, afinal, amigo é pra essas
coisas. Pela manhã ele saía em busca de mais trago e a noite o povo assistia
atônito aquelas algazarras, churrascada e cachaçadas das boas. Alguns pensaram
até em chamar a polícia tal a perturbação do sossego da vila. Uma noite,
enquanto os outros companheiros dormiam, o Bará Lodê se pegou a conversar com o
negro Ademar de Xangô. Falou sobre sua passagem na terra, seu tempo de vida e
revelou o porquê de ter escolhido o negro Ademar para protegê-lo. O negrão, na
maior atenção, ficou por longo tempo ouvindo. Dentre as revelações, uma ele
nunca esqueceria: - Tchê, negrão, tu sabes por que te escolhi? Foi por tu ser
obstinado. É virtude obedecer alguém ou alguma coisa, mas o mais belo é a
tenacidade, porque ela revela que neste momento o homem não está mais só e a
voz a que ele obedece é a do coração, a que está vindo do seu Orixá. É isso o
que te diferencia dos demais homens. Tu és um homem honesto e puro de coração,
vencerás por teu esforço e trabalho e eu estarei aqui para te ajudar a criar
teus filhos e protegê-los na rua. Então era isso. Na sua teimosia demonstrara a
força de seu caráter. Ele só não entendia como o Bará destacava como virtude
aquilo que para ele era um grande defeito. Agora ele entendia... O que todos
consideravam defeito, sua obstinação, fora determinante para que o Bará Lodê o
escolhesse como herdeiro e zelador. Na manhã seguinte saiu determinado a
cumprir uma grande tarefa. Já que ele era considerado excelente mestre de obra,
pretendia construir uma enorme casa para seus compadres. Comprou duzentos
tijolos, uma bolsa de cimento e areia barrenta. Obra acabada, ficou linda de
ver, digna de elogios. Buscou sete galos vermelhos, três cabritos e os
sacrificou como agrado aos homens. Chamou o tamboreiro Valter Calisto, o Borel,
e mandou tocar por uma hora as rezas para que seus compadres não comessem em
silêncio. Na semana seguinte conheceu o poder da magia do Bará Lodê. Os Filhos
de Santos, os amigos e clientes se multiplicaram. A mulher e as crianças
corriam pela casa, felizes com o novo homem no qual que ele se tornara. À
tardinha, quando a gente passava pela frente daquela casa, podia se ver o negro
Ademar de Xangô sentado em um banquinho, em frente à casa do Lodê, com a porta
aberta, tomando mate e proseando como se os parceiros estivessem ali. Quer
parecer que a frente e oferendas dos Orixás, além do churrasco do Ogum, foi
acrescida de erva mate e chimarrão. Mas bah, tchê! Tri legal.
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