Por Thonny
Hawany
Não está muito longe o tempo em que as igrejas cristãs, quase
que de modo geral, proibiam que seus fiéis assistissem a programas de
televisão, ouvissem rádio, estudassem, lessem livros cujos autores pudessem, de
alguma forma, desmentir ou descaracterizar seus discursos alienadores e de
pouca profundidade teológica. Como sabemos, em lugar nenhum, está escrito que assistir
a programas de televisão, ouvir rádio, estudar ou ler livros constituam algum
tipo de pecado. Mesmo não havendo nenhum dogma que proíba, esse subterfúgio é
usado ainda hoje, em menor escala, como forma de alienação de adeptos.
Nas religiões de matriz africana, está acontecendo um
fenômeno semelhante. Há sacerdotes que, de modo geral, proíbem seus filhos a
lerem livros, a consultarem à Rede Mundial de Computares, a assistirem vídeos e
documentários que possa contribuir com a aquisição de conhecimento sobre a
religião. Há ainda os que não proíbem, mas que, por meio de um discurso que em
nada se sustenta, buscam descaracterizar, sem exceção, todo o material
publicado em livros, em sites ou em blogs, quase sempre, afirmando que tais
conhecimentos são ilegítimos e que os únicos válidos são aqueles obtidos
oralmente no seio de suas famílias.
Quando foram publicados os primeiros livros contendo
cânticos, rezas, ebós, vocabulário, conceitos gerais da religião dos orixás; a
voz de condenação, nos terreiros, era quase que unânime. Não se era raro ouvir
os mais velhos dizerem que a tradição estava ameaçada, que a cultura dos orixás
estava sendo corrompida, que os segredos estavam sendo banalizados, entre
outros comentários.
Para nortear o nosso entendimento sobre o assunto proposto
para esta reflexão, a seguir, criaremos alguns problemas que servirão como
balizadores do discurso que pretendemos sustentar em nossa tese. São elas: (1)
A tradição afrodescendente foi mantida igual e da mesma forma em todos os terreiros
do Brasil? (2) Todos os sacerdotes afrodescendentes estão aptos a ensinarem os
seus filhos tudo sobre a cultura e sobre o àṣẹ? (3) Todos os livros escritos
a respeito das religiões afrodescendentes mantêm intactos os dogmas, preceitos
e fundamentos construídos ao longo de milênios? (4) Tudo o que está publicado
na Rede Mundial de Computadores é confiável do ponto de vista das religiões de
matriz africana? (5) O conhecimento adquirido por intermédio das mídias
diversas carrega em si o àṣẹ como essência de maior poder das religiões de
matriz africana?
Sobre a primeira pergunta que indaga a respeito da
manutenção das tradições nos terreiros de candomblé do Brasil, a experiência
nos faz dizer que: nem mesmo na África a tradição é a mesma de um país para o
outro, de uma cidade para a outra, de um estado para o outro, de uma aldeia
para a outra, de um clã para o outro, de uma família para a outra. No Brasil,
isso não é diferente, a linha geral da tradição foi sim mantida, e é isso que
nos faz pertencer a um grande grupo sócio-político denominado de “Povo de
Terreiro” ou “Povo de Àṣẹ”. No entanto, cada casa de àṣẹ, segundo suas
necessidades históricas, geográficas, temporais, sociais e políticas adaptou e
construiu sua forma de entender as tradições afrodescendentes.
A respeito da segunda questão, acreditamos que nem todos os
sacerdotes estão preparados para a transmissão do conhecimento e do àṣẹ. A
lacuna deixada pelos mais velhos, que morreram sem transmitir o que conheciam,
tem sido considerada, por diversos autores, como a grande vilã da falta de
conhecimento de parte da geração atual. A cultura africana e o conhecimento
afro-religioso são complexos e profundos; por isso, não acredito que haja
sacerdotes com a faculdade de transmitir tais conhecimentos de modo a
exauri-los. A tradição oral, por si só, não é garantia de manutenção do
conhecimento adquirido, nem mesmo de resgate daquele que foi perdido. A
história é nossa maior testemunha. É notória a importância que tiveram e têm os
pesquisadores de fora e de dentro da religião para o resgate de muitos
conhecimentos ameaçados de esquecimento.
Sobre os livros cogitados na terceira questão, não acredito
que haja neles todo o conhecimento a respeito de uma cultua tão rica; no
entanto, é possível dizer que a partir da publicação, no Brasil, das obras
acadêmicas de Pierre Fatumbi Verger, de Roger Bastide e também daquelas
escritas pelos chamados autores litúrgicos, os olhos do Povo de Terreiro
abriram-se para novos rumos e para novas perspectivas.
Os livros, quase sempre, refletem o ponto de vista dos seus
autores e, necessariamente, podem não refletir o ponto de vista dessa ou
daquela família de àṣẹ. Nos livros não está tudo o que se pode saber sobre a
cultura afrodescendente, mas há neles o ponto de partida para se chegar a uma
compreensão que, de modo egoísta, sempre foi negada a quem quer e precisa
aprender para dar continuidade ao legado dos òrìṣà.
Em se tratando da questão que indaga sobre a Rede Mundial de
Computadores, como fonte de conhecimento, seria ignorância minha e de quem o
fizer negar a importância da internet como fonte de pesquisa e
de aquisição de conhecimento, seja ele de qual natureza for. No entanto, em
face da diversidade de entendimentos e das várias interpretações que foram
feitas a partir dos elementos culturais trazidos pelo africano para o
continente americano, as diversas postagem disponíveis na internet podem
não refletir um conhecimento real conforme a ótica de cada família de àṣẹ.
Isso significa dizer que: o que está disponível na internet pode
ter validade para uns, mas não para outros. Além do mais, ainda é bom constar
que a inventividade humana e sua necessidade criativa podem levar um dado autor
a produzir e a publicar algo que apenas possui aparência de legítimo, mas que
nada tem a ver com os fundamentos afrodescendentes guardados e transmitidos, de
geração a geração, pelas principais famílias representantes da cultura africana
no Brasil. Em síntese, não é inteligente proibir filhos e filhas de santo a
pesquisarem conhecimentos na internet, mas recomendar cautela aos
que se valem da internetcomo fonte de pesquisa para não se
embriagarem de engodos como se fossem verdades, é obrigação de todos os
sacerdotes.
A quinta e última questão é bastante subjetiva e, tanto por
isso, não seria possível construir aqui uma resposta que não atendesse à
subjetividade do próprio questionamento. Àṣẹ é poder, é energia, é essência
do òrìsà, é legado de nossa ancestralidade, é virtude do homem que o merece.
As mídias diversas (livros, apostilas, sites, blogs) podem
até conter farto conhecimento sobre cultura afrodescendente, sobre religião de
matriz africana; podem até definir o que se deve entender por àṣẹ, contudo
não serão capazes de transmitir o àṣẹ como verdadeira essência da
ancestralidade. Àṣẹ não se empacota, não se embala, não se envaza, não se
embrulha. O àṣẹ não é uma porção de pó, um líquido colorido ou incolor em
vidro, um talismã, um objeto qualquer, algo que se vende ou se compra em loja
de artigos religiosos.
O àṣẹ se sente e se é feito sentir. Trata-se, pois, de uma
suprema célula de energia invisível que é transmitida de geração em geração,
por meio do contato social e, especialmente, na prática dos atos religiosos. É
nos atos de passagem que o àṣẹ de nossos ancestrais se converge e se mistura
com a nossa própria essência de vida. Uma vez transmitido a alguém, viverá o
àṣẹ para sempre em nossos corpos físico e espiritual, individual e
coletivo.
Todas as palavras (escritas ou faladas) produzem conhecimento
porque são vivas ideologicamente; mas somente aquelas proferidas nos ritos e
atos de passagem do Candomblé podem transmitir conhecimento e àṣẹ ao mesmo
tempo.
Assim sendo, concluídos que o conhecimento a respeito de
cultura afrodescendente e de àṣe, na sua mais ampla acepção da palavra, não
deve ser nem tanto por tradições orais, nem tanto pelas lições escritas e
veiculadas pelas variadas mídias. A união entre o conhecimento científico e o religioso
seria garantir de elucidação de toda a verdade sobre o criador e toda a sua
criação. As tradições orais convergidas às publicações nas diversas mídias
podem representar a busca pela perpetuação de uma fé que já vive há milênios.
Nós, sacerdotes afrodescendentes, a exemplo de alguns
inseguros, não devemos temer os livros, a televisão, o rádio, os jornais, o
celular, os satélites, o computador, a internet. Devemos sim fazer uso disso
tudo como instrumento de operacionalização e otimização dos nossos cultos, das
nossas tradições, da transmissão do àṣe que nos foi legado pelos nossos
ancestrais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário