"...Conta os mais antigos uma história acontecida no início dos anos quarenta, que faço questão de relatar como ela me chegou aos ouvidos, tendo o cuidado de não distorcer os fatos e deturpar o real sentido, até pela emoção e espanto que me causou, pela forma pela qual me relatou minha avó Jovita de Xangô.
A Rua Baronesa do Gravataí, ali no Bairro Cidade Baixa, faz parte do mapa traçado pelos caminhos do Batuque, Bacia das mais consideradas, hoje histórica pelo tudo que aconteceu ali.
Seus casarios antigos ainda hoje fazem parte do tombamento que a Prefeitura fez para preservar a história.
A população daquele lado da cidade era uma mistura do povo negro com emigrantes Portugueses e parte da população mais carente vinda do interior em busca de trabalho, em sua maioria emigrante italianos, gente da roça, gente humilde e trabalhadora.
Nessa mistura de raças e crenças tinha o Batuque o seu espaço garantido.
Na época andava o Batuque de mãos dadas com a Religião Católica, que em suas festas tinha a participação efetiva nas comemorações, como de Santa Bárbara (Yansã) e Santo Antônio (Bará).
O ponto culminante era a presença maciça do povo negro na festa de Nossa Senhora dos Navegantes (nossa Mãe Yemanjá), dia 2 de Fevereiro, com procissão naval pelo Rio Guaíba.
Tudo tinha continuidade com a passada na quermesse, que durava uma semana, com jogos, divertimentos, churrasco, cerveja e melancia.
Esta fruta de Yemanjá era para deixar qualquer um louco de tanto comer.
Havia respeito a todo o sincretismo da época e que permanece até os dias de hoje, e a miscigenação de culturas daquele povo e das religiões.
A Religião Africana (Batuque) tinha um tabu que sempre fora preservado, que branco não recebe Santo (Orixá). Isto permanecia intocável de caráter irrevogável
Até aquela data nunca um Orixá fora visto cavalgando um branco.
Isso por si só já era um tremendo preconceito, todos brancos por sua vez, o aceitavam passivamente, não obstante, fazerem parte do grupo religioso e terem efetiva participação no meio, trabalhando como se nada os tivesse a contrariar. Eram elogiados pela dedicação e trabalho dentro das cozinhas.
Quando das matanças eram os mais trabalhadores, até por conhecerem melhor as lides do trabalho braçal e campeiro para tirar couro dos cabritos e ovelhas e consertar as aves, lá estavam os italianos e alemães, alegres e festivos, com suas risadas e brincadeiras, a trabalharem incansáveis e participativos dentro da fé. Quando questionados o porquê de tanto trabalho respondiam: “Não é pela negrada que trabalhamos. É pelos Orixás”.
Isso posto já era motivo de honra.
Sérgio Luzzieti Fedrizzi, italiano de Caxias do Sul, conquistou a confiança de Mãe Helena de Yemanjá. Quando lá chegou à sua procura, tinha uma enorme ferida na perna que o incomodava há anos, não havia médico e remédio que o curasse. Ela, com banhos de ervas e um bom Axé de Xapanã, fez a ferida desaparecer em uma semana. Aquilo por si só já o conquistou. Trabalhava com consertos de fogão e, como viu o dela estragado, meteu a mão e, com algumas soldas na lataria, deixou-o novinho em folha.
Aproximou-se com visitas constantes em horários estranhos, de olho na sobrinha de Mãe Helena, nega Estela de Oxum.
Terminou se amasiando com esta e, juntos, foram morar ali pertinho na favela da Ipiranga onde hoje é o Palácio da Polícia Civil.
O próximo passo foi pra já. Um belo dia lá estava ele feliz de trunfa vermelha e branca fazendo obrigação para Xangô.
Nada mudou as coisas continuou como sempre foram. Os anos foram passando e, com o tempo, tornou-se o braço direito de Mãe Helena, que nada fazia sem a presença do agora Sérgio de Xangô.
Estela de Oxum, a companheira, despertou sua curiosidade para os segredos da religião: lendas, rezas, feituras, ferramentas, Okutás, frentes e oferendas. Tornou-se perito no tema e profundo conhecedor das magias e feitiços. Por ser de confiança, adentrou e avançou dentro dos mistérios até então proibidos ao mundo branco; para aquela casa dedicou os melhores anos de sua vida.
Mas o que passo a relatar era a quebra de tudo o que aquele povo negro acreditava ser de fundamento (branco não receber Santo) e que o fato pôs por terra.
A grande festa de Yemanjá de Mãe Helena, era, no ano, esperada com ansiedade pelo povo. Vinha gente de todo o interior do Estado e dos Países do Prata (Paraguai-Uruguai-Argentina).
Festa por demais concorrida de Porto Alegre. Chega o grande dia, lá está o povão derramando pelo ladrão.
Gente se empilhando, cada qual procurando o melhor lugar, comida farta sendo servida pelos corredores, no salão os tamboreiros executam as rezas, o povo canta e o som percorre o bairro todo. Uma magia. Só os que conhecem este universo sabem o quanto é belo este momento.
A cozinha sob o encargo do italiano Sergio de Xangô ia de vento em popa, este se desdobrando em comandos.
Vamos lá gente, libera o Amalá, passa a bandeja, serve para o povo do fundo, acarajés, cocadas, quindins, melancias fatiadas; as bandejas seguiam cheias e retornavam vazias, todos se revezavam em atendimento pois estavam ali para servir e este quesito era para a Mãe Helena o mais importante. Dizia sempre “Se queres ter fartura em tua casa, dá comida pro povo”.
Batuque chegando ao seu final, a nega Estela passa pelo marido e dá um toque “Nego, a Mãe Yemanjá já vai embora, aproveita e vai toma teu Axé que eu cuido aqui da cozinha”.
O Luiz dá uma última olhada para ver se tudo vai correr bem.
Dirige-se para o salão.
Está difícil entrar de tanta gente que tem, mas ele consegue com esforço chegar até a Mãe Yemanjá. Ali está a doce Mãe lhe aguardando; bate cabeça e recebe aquele abraço gostoso, quantas vezes ele chorou naquele ombro, mais aquela Mãe sempre soube lhe confortar.
Enquanto recebe o Axé um Bará dança se despedindo.
Bem, aqui deixamos nosso Luiz no conforto dos braços de Mãe Yemanjá e voltemos ao Pai Bará que, despachando-se, canta seu Axé. Dança até a porta na volta estende o braço interrompendo os tamboreiros e pede um Alujá no momento eu o som do s tambores atingem a força e energia máxima, o que vemos: O Luiz, aquele Luiz lá da cozinha, o italiano, o branco, sai dos braços da Yemanjá, salta para dentro do salão num movimento louco e um berro que ecoou pela rua toda, e vão ao encontro dos tambores dançando um Alujá com todo o vigor, braços, mãos e pernas voavam, com habilidade e destreza.
No que de pronto o Bará manda os tamboreiros pararem e numa voz em tom ameaçador diz: “Mas o que é isso, mas o que está acontecendo aqui, aonde é que se viu um Orixá cavalgar um branco?”. Ali estava o desafio posto à prova, um mal-estar percorreu o salão.
Alguns convidados contrariados ameaçavam se retirar tal a afronta, outros duvidosos permaneciam calados, mas todos, surpresos, aguardavam o desfecho do fato ali exposto.
Correu a notícia rua afora e o salão já lotado ficou pequeno para tanta gente curiosa que correu para ali ver o que se passava.
Um silêncio sepulcral manteve o clima de suspense e espanto, que aconteceria agora, todos se perguntavam. Pretendia o Bará desmascarar o impostor? Teria Mãe Helena que passar semelhante vergonha, ela que sempre foi rígida em seus princípios e fundamentos?
O Bará pede então um Alujá de Aganjú, e convida o Xangô do Luiz para acompanhá-lo. Esta era a prova definitiva. Todos sabiam, nem um humano passaria por aquela prova, era dança do fogo, somente os Deuses podem executar aqueles passos.
Lá vai o Bará, tendo o Xangô ao seu lado para a dança do fogo, os tamboreiros metem o braço, como a dizer: “Ah! Vocês querem, pois vão ter”.
O povo enlouquecido aplaude e saúda Alupô, Kaô Cabecile.
Os tamboreiros já não agüentam mais, não tem mais força para tocar, os minutos passam, o tempo voa, aquilo parece uma loucura, não tem hora pra terminar.
Foi quando, lá do cantinho do salão bem devagarzinho, levantou-se o Oxalá velho do compadre Noca, com passos lentos, de mansinho, aproximou-se da referida dupla, e retirando o manto que cobria sua cabeça jogou-o no chão do salão em frente aos tambores, e de pronto cessaram os tambores.
Novo silêncio e Pai Oxalá fala: “Meus filhos, esta disputa não vai levar os senhores a lugar nenhum, os Orixás podem ser negros, mas a religião não tem cor”.
Os dois Orixás, ajoelhados junto a Oxalá, vão até a porta e na volta abraçam-se e cumprimentando-se beijam as mãos um do outro.
Pensei em terminar aqui esta história, mas o tempo passou e ela ficou mais rica ainda.
Procurei ser o mais fiel possível, não alterando em nada os fatos, mantendo a linha do que me foi contado.
Mas por que digo que ela ficou mais rica? Pelo fato do Xangô ter ocupado a cabeça de um homem branco? Talvez...Pelo fato de Oxalá ter dito que religião não tem cor? Talvez...Mas pela certeza absoluta e incontestável, do óbvio ululante que sem o povo branco a muito, mas há muito tempo nossa Religião Africana teria desaparecido tal o abandono e maltrato que tem sofrido pela maioria do povo negro."
História do Livro "Yemanjá Quer Falar Contigo".
Àse gbogbo.
Que depoimento e blog lindos! Fiquei realmente emocionada! Parabéns!
ResponderExcluirLINDO MUITO LINDO.
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