Por Thonny Hawany
RESUMO: Este texto pretende discorrer de modo sucinto sobre o orixá Ori e suas interfaces. O objetivo geral consiste em apresentar uma visão panorâmica a respeito de Ori assinalando o seu conceito, sua origem sagrada, suas subdivisões e sua importância como mediador entre homem e o sagrado. A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi composta de síntese e compilação de dados obtidos a partir da experiência aliada à leituras de obras que versam sobre o tema. Por fim, concluímos ter alcançado as metas objetivadas no roteiro inicial deste trabalho, haja vista que conseguimos apresentar uma visão substancial a respeito do orixá Ori e suas interfaces.
Palavras-chaves: Orixá Ori, cabeça, homem, sagrado, Candomblé, religião
ABSTRACT: This text intends briefly to describe the orisha Ori and his interfaces. The general objective is to present a panoramic view of Ori pointing out his concept, sacred origin, subdivisions and importance as a mediator between man and the sacred. The methodology used for the elaboration of this article was composed of synthesis and compilation of data obtained from my background allied to the readings of works that deal with the theme. Finally, I conclude that I have achieved the goals set out in the initial script of this paper, since I have been able to present a substantial vision regarding orisha Ori and its interfaces.
Keywords: Orisha Ori, head, man, sacred, Candomblé, religion
Introdução
Neste texto, dedicar-nos-emos a falar de Orí, o mais importante òrìsà entre aqueles que determina a existência humana, quer seja na Terra, quer seja onde ela exista. A expressão orí é utilizada pelo povo iorubano e seus descendentes para significar a cabeça física do homem, mas também para denotar sua essência espiritual conforme veremos mais adiante.
Segundo um importante adágio iorubano: “ko sí òrìsà tí i dá ni gbè léhìn Orí eni”, cuja tradução literal é: nenhum òrìsà abençoa uma pessoa antes de seu Orí”, o Orí é o primeiro òrìsà a ser louvado desde o nascimento do indivíduo. É ele quem nos acompanha desde a nossa concepção.
Nas discussões que pretendemos apresentar neste pequeno artigo, ater-nos-emos a uma visão panorâmica do òrìsà Orí e suas interfaces sem, no entanto, enveredar-nos pela esfera onde estão assentados os mais recônditos segredos que envolvem o culto a Orí e a sua ritualística. Entendemos que os segredos e fundamentos de Orí devem ser apreendidos pelos iniciados no contato físico com os mais velhos no dia a dia, nos terreiros e sociedades de àse.
Por uma questão de preferência, as palavras em iorubá que forem utilizadas neste texto, na medida do possível, serão grafadas como recomendam as gramáticas e os dicionários da língua. Entendemos que, desta forma, os nossos leitores, além de acessarem as discussões sobre o mote principal, ainda terão acesso a legítima escrita das palavras que engrossam o rico vocabulário praticado nas comunidades de terreiro.
Por fim, registramos que a palavra orí será grafada neste artigo de duas formas: quando nos referirmos ao òrìsà, a palavra será iniciada com letras maiúscula e, ao nos referir à cabeça material, bem como as suas subdivisões, iniciaremos a palavra com letra minúscula. Vencidas as orientações preliminares, vamos ao mote principal.
O orí e suas dimensões
Orí é uma divindade pessoal que serve a uma só pessoa. Trata-se da energia que nos liga ao nosso òrìsà. Conforme um conhecido itan, “Orí faz o que os òrìsà não fazem”. Quando Òrúnmìlà reuniu todos os òrìsà e perguntou: “Quem dentre vós poderia acompanhar seu devoto numa longa viagem além dos mares e não voltar mais? [...] Somente Orí respondeu que poderia acompanhar seu devoto numa viagem sem volta além dos mares”.
O orí é dotado de duas dimensões importantes para a operacionalidade de sua existência física e divina, são elas:
1. o orí-òde, parte física da cabeça. É no orí-òde onde estão todas as características físicas e as afeições humanas. 2. o orí-inú, energia pura, é a parte imaterial que compõe o todo denominado orí. Essa é a parte imortal do orí, é ela quem retorna ao Ọ̀run após a nossa morte material.
Segundo Beniste (2004), ao interpretar um trecho do verso de Ifá pertinente ao odù Ogbètegùndà, “é o orí-inú que controla o orí-òde. Isso sugere, portanto, que o sucesso do ser exterior depende essencialmente, da natureza dinâmica do interior do homem” . Neste sentido, cabe uma reflexão: o homem, na sua essência, é aquele que se move por detrás do que chamamos de matéria. A ser material da forma como o conhecemos é apenas o nosso veículo de existência e locomoção aqui na terra.
Por sua vez o orí-inú é composto por duas partes extremamente importantes e valiosas para a sua existência, são elas:
1. o òkè-iponri onde se localiza o èémí (respiração), o sopro divino. Essa parte é considerada como o núcleo vital do orí. 2. o orí-apere, responsável pela ligação entre o orí-odé e o orí-inú. É o elo que sustenta a relação entre o orí físico e o orí espiritual. Quando esse ele se rompe, ocasiona-se a morte física do Ser.
No plano divino, a tarefa de confeccionar os orí-inú foi dada por Olódùmarè, Deus criador de todas as coisas, a Bàbá Àjàlà, uma divindade da família dos òrìsà funfun que, apesar de ser um òrìsà muito importante do panteão africano, ainda assim fabrica cabeças com imperfeições em face de suas próprias imperfeições sobre as quais não trataremos neste artigo.
Há quem diga que o fabrico de cabeças imperfeitas é proposital para que sejam preservados o livre arbítrio e as possibilidades de escolha do Ser que se materializará para viver na Terra.
A literatura não é clara com relação a isso, ela apenas nos dá um norte para as cogitações. Pensando assim, podemos afirmar que essas imperfeições podem estar relacionadas com as provas que cada indivíduo deverá passar quando materializados aqui na Terra.
Ainda conforme Beniste (2004) , Olódùmarè atribuiu a Òrúnmìlà a missão de testemunhar a escolha do orí que cada um de nós fazemos e a de orientar a todos a fim de nos restabelecer os possíveis desequilíbrios decorrentes das escolhas que fizemos. É tarefa de Òrúnmìlà ensinar-nos como viver em harmonia com o orí que escolhemos. Com a possibilidade de consertar, de equilibrar e de alinhar o orí desconfigurado foi criado pelo sagrado o rito do borí, sobre o qual falaremos noutro artigo que pretendemos escrever especialmente, para tratar de tal assunto.
O orí-odé, parte física e mortal do grande sistema denominado orí é dividido em cinco partes que estão intimamente relacionadas com os seus lados, vejamos:
1. o iwájú-orí, o lado da frente, a testa; 2. o ípàkó-orí, o lado de trás, a nuca; 3. o àtàrí, o lado de cima, a coroa; 4. o òsì-orí, o lado esquerdo da cabeça; 5. o òtun-orí, o lado direito da cabeça.
O orí é a força espiritual que nos conhece integralmente dadas as suas várias dimensões. É ele quem sabe de todas as nossas necessidades e é capaz de provê-las tão logo necessitemos.
O nosso orí é programado inicialmente por Olódùmarè para nos conhecer em nossa amplitude e nos conduzir a um caminho previamente determinado pelo sagrado no Ọ̀run. O nosso ori é capaz de nos livrar de todos os males terrenos e não terrenos.
Divindades ligadas ao orí
Se levarmos em consideração que todo òrìsà pode ser dono de uma cabeça, então, todos eles deveriam compreender a relação daqueles que vamos apresentar neste tópico, no entanto, restringir-nos-emos apenas aos que possuem uma importância direta no processo de criação e de manutenção do orí, são eles:
Olódùmarè: é o criador de tudo e de todas as coisas, é ele quem dá a vida ao orí. É Ele que sobra o hálito sagrado que nos faz viver como seres dotados de uma centelha divina. No itan que assegura ser Àjàlá o modelador de cabeças, está escrito que depois de ter terminado a tarefa de construir orí, “Olódùmarè pôs no homem a respiração e ele viveu.” (PRANDI, 2001)
Àjàlà: é o oleiro que molda o orí-inú. Conforme o itan supracitado, Olódùmarè solicitou a Àjàlá para que terminasse a obra incompleta de Òṣàlá. Tornou-o o responsável pela confecção das cabeças dos homens e das mulheres. Sabe-se que Òṣàlá havia criado os seres, mas não havia lhes atribuído uma cabeça.
Segundo sabemos, os orí fabricados por Bàbá Àjàlà não são iguais e, por isso, não têm as mesmas qualidades e capacidades. Quando a pessoa, pouco esclarecida, vaidosa, impaciente escolhe o seu próprio orí sem se atentar para esse fato, ela pode eleger um orí que lhe ofereça maiores dificuldades aqui na Terra; no entanto, quando alguém escolhe ou é auxiliado a escolher um orí melhor confeccionado, sua vida poderá ser mais fácil na curta e efêmera passagem que terá neste planeta. Ao escolher o orí, o indivíduo está escolhendo o seu destino que poderá ser de sucesso ou de fracasso, ou de um misto das duas coisas. Esse fenômeno classifica os orí em dois tipos que são:
1. o orí-rere - bom orí - é aquele que inevitavelmente terá sucesso, aquele que vencerá todas e quaisquer dificuldades sem muitos esforços. 2. o orí-buruku - mau orí - é aquele que certamente terá dificuldades para se adequar às exigências do ambiente terreno, é o orí que deverá ser acompanhado de perto por Òrùnmìlá a fim de prover suas necessidades espirituais e terrenas por intermédio de Ifá que poderá lhe indicar a possibilidade de conserto com um borí.
A escolha de um bom orí não significa necessariamente a escolha do sucesso. Escolher um bom orí significa escolher as melhores condições e o melhor potencial para alcançar o sucesso. Todos, independente da escolha que fizemos, devemos trabalhar para potencializar a capacidade do orí que escolhemos a fim de alcançar o sucesso. A diferença da quantidade de trabalho é medida pela escolha do orí que fizemos no Ọ̀run.
Yemanjá: No itan em que Yemanjá é eleita a protetora das cabeças, conta-se que o grande senhor Olódùmarè fez uma reunião e convocou todos os òrìsà, apenas Yemanjá levou um presente: a cabeça de um carneiro que ela havia imolado. Vendo isso, Olódùmarè expirou: “Awoyó orí dorí re”, cuja tradução é: “Cabeça trazes, cabeça serás”. Desde então, Yemanjá passou a ser a senhora de todas as cabeças. É ela a mãe protetora de todos os orí. Não há rito de borí completo sem que Yemanjá seja reverenciada.
Òrùnmìlá: conforme vimos anteriormente no tópico em que falamos de Àjàlá, Òrùnmìlá, o òrìsà responsável pelo testemunho da verdade, é aquele que está presente no momento em que escolhemos o nosso orí. É ele a própria verdade contida em nosso destino. E sem sombra de dúvidas é o único que nos pode auxiliar por meio de Ifá a resolver quaisquer que sejam os problemas apresentados em nosso orí e na nossa existência como um todo.
O orí é o caminho de cada indivíduo
Acima, vimos que podemos escolher um bom ou um mau orí e que isso pode determinar o que seremos aqui na Terra. No entanto é bom lembrar que essa escolha não garante o sucesso ou o fracasso sem que haja outras possibilidades.
Por exemplo, um ser que tenha escolhido um orí-rere (bom orí) pode muito bem fracassar em sua missão aqui na terra, enquanto outro que tenha escolhido um ori-buruko (mau orí) pode, por meio de saídas honrosas, conseguir o sucesso.
Os orí não são imutáveis. Se fossem programados para não mudar de acordo com as nossas ações, não haveria o livre arbítrio com o qual nascemos todos.
Quem nasce com um orí-rere deve se esforçar para mantê-lo bom ou procurar melhorá-lo. De igual modo, entendemos que quem nasce com um orí-buruku deve procurar potencializá-lo a fim de torná-lo melhor.
Muitos de nós percebemos que não nascemos para o sucesso e nos conformamos passivamente com isso, nada fazemos para melhor, para potencializar ou para otimizar a capacidade do nosso orí.
Um orí bem zelado, bem alimentado, bem reverenciado, respeitado em todas as hipóteses, é um orí de bons caminhos, de felicidade, de harmonia, de saúde, de fatura, de riqueza, de alegria, de amor.
No entanto, se o nosso orí, de alguma forma, for maltratado, ele pode não funcionar como foi programado inicialmente. As nossas boas ou más atitudes podem determinar a capacidade de ação do nosso orí e, consequentemente, mudar nossas trajetórias. Um orí-rere pode, por vaidade não alcançar o sucesso, enquanto um orí-buruku pode melhorar sua condição, por se dobrar aos conselhos do sábio Òrùnmìlá.
A embriaguez do álcool, a torpeza das drogas e a impudicícia dos maus sentimentos e das más ações, promovidas por pensamentos ou por palavras (pecado), podem levar o nosso orí a se desprogramar e, consequentemente, ao sofrimento e ao caos.
Muitos que sofrem de doenças físicas, psicológicas e/ou morais, cujo diagnóstico conclusivo, as ciências terrenas não conseguem chegar, podem ter nascido entre os que escolherem um orí-buruku ou, de alguma forma, ter sofrido de uma disfunção do orí, caso tenha nascido, a priori, entre os que escolherem um orí-rere.
Como já vimos, a programação do orí se dá no Òrun, porém sua reprogramação pode ocorrer aqui mesmo no Àiyé (Terra), por meio dos conselhos de Òrúnmìlà que enviará as regras a um bàbálòrìsá ou ìyálòrìsá por intermédio de Ifá. O realinhamento ou cura de um orí desprogramado pode-se dar com a ministração de um borí que significa literalmente: dar comida a cabeça.
A expressão borí vem da junção de dois radicais da língua iorubá, a saber: bo=comida + orí=cabeça. Sobre esse mágico rito de reprogramação do orí veremos em outro texto que já estamos escrevendo.
Considerações finais
O tema sobre o òrìsà Orí é por demais amplo e, ainda que quiséssemos, não conseguiríamos dar conta de tudo o que se tem para falar a respeito desse mote num único texto.
Assim sendo, anunciamos que este pequeno artigo não está finalizado, outros conhecimentos decorrentes das pesquisas que estamos fazendo e também das sugestões, sempre muito bem-vindas dos nossos leitores, poderão ser acrescidos ao que já foi previamente consignado.
Cabe ainda salientar que: o que apresentamos neste texto foram as nossas verdades a respeito do òrìsà Orí e de suas interfaces; os nossos argumentos que, porventura, forem refutados e devidamente justificados pelo nosso leitor sempre muito atento, poderão ser aparados, ajustados, acrescidos, rejeitados na medida em que nos convencermos que nossa verdade carece de outras verdades.
Referências
BENISTE, José. Òrun Àiyé: o encontro entre dois mundos. 4.ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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