sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Dança no Batuque II


O corpo sagrado

O homem está em contato contínuo e harmônico com a natureza, que fala com os mortais através das suas vibrações, captadas pelo corpo, por isso ele não é negado, mas vive o seu compromisso com o mundo. Os seus ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua. Eis por que o corpo é decorado para mostrar a sua importância e resguardá-lo dos ataques mágicos externos, protegendo as aberturas com decorações ou jóias, como os brincos cheios de ‘pendentes’.

O corpo sagrado é o templo por excelência, é simbolicamente o "trono" e, por isso, o das divindades (típica é a representação de Hísis sentada) é sempre representado (Neumann, 1981:101) como: “um trono em si”. Portanto as cadeiras são uma área sagrada do corpo humano, onde a bacia e as nádegas representam a fertilidade.

Centro da irradiação simbólica portanto é o corpo, expressão das energias da natureza e em unidade com o mundo natural que o abrange. Daí a sua função de busca das energias cósmica e da expressão delas, vivenciando-as.

Sendo o corpo humano uma cópia das formas e das energias do cosmo, os próprios elementos (fogo, ar, água e terra) juntam-se segundo arquétipos diferentes. As palavras do biólogo Pelosini (1994:94) aplicam-se bem à concepção africana do corpo humano :
“...o universo (macrocosmos) e o homem (microcosmos) são criaturas similares, que obedecem às mesmas leis como um tipo de fantástico e perfeito relógio cósmico que marca harmoniosamente os ritmos”.

O corpo é então um centro de forças opostas que devem estar em equilíbrio e em relação complementar. Na mesma maneira a pessoa pode ser percebida como o resultado do equilíbrio das diversas partes do corpo, símbolo da comunicação entre o mundo natural e aquilo sobrenatural.

Mas o corpo adquire um sentido também na interação com o espaço e com o tempo. Espaço atravessado pelas energias da natureza que criam campos energéticos que colocam cada elemento em relação com o outro, segundo o principio fundamental da existência africana que propõe uma visão de mundo ligada a comunicação entre todos os seres humanos e não humanos.

A dança cósmica

Shiva criou o universo dançando, assim como nos mitos gregos Eurinone, Deusa de Todas as Coisas, emergiu nua do Caos, mas não vendo substância em redor onde firmar os pés, apartou do céu o mar, dançando solitária por sobre as suas ondas. (Graves, 1990:31). Nas lendas dos Iorubás, os orixás também gostavam muito de dançar durante as festas ou para atrair alguém.

Entendem-se assim que não só no pensamento africano, mas também no oriental e grego o universo é percebido em contínuo movimento, formado por ondas vibratórias organizadas no "verbo" da Divindade Suprema que expressa-se na respiração com os dois movimentos básicos da natureza viva: expansão e contração. Movimentos fundamentais da vida do cosmo, das plantas, dos animais e do homem. Belinga diz (1993:11):
"Nas nossas tradições o ‘verbo’ possui três elementos que o determinam e que permitem a sua colocação seja entre as formas artísticas, seja na comunicação interpessoal. Três são as formas nas quais o "verbo" manifesta-se: a palavra, que caracteriza a expressão interior e exterior do pensamento; a música que expressa a beleza; e por fim a dança, que é em função seja dos ritmos dos instrumentos seja do ritmo interior do ‘verbo’ ”.

Sendo o africanismo de tradição oral, a visão de mundo é passada por meio do corpo através de um longo percurso de aprendizagem e de incorporação dos fundamentos religiosos que o propõe como instrumento de memória para a comunidade e de sabedoria para o fiel. Por isso a dança e a música associadas ao mito, tem a função de uma literatura nas sociedades de tradição oral e possuem uma pluralidade de sentidos: a história da etnia, a visão do mundo, o ethos do grupo, a organização da sociedade e as crenças religiosas e várias funções como aquela de fortificar o grupo e o conhecimento da comunidade sobre ela mesmo, além de expressar a identidade individual e espiritual da dançarina.

Esta pluralidade de sentidos é expressa por meio do símbolo principal da dança: o corpo da sacerdotisa-dançarina, um microcosmos, no qual encontra-se todas as energias da natureza em um equilíbrio único e específico de cada indivíduo, espelho das energias do macrocosmos. A dança sagrada contempla dois aspectos: um lado exterior e um lado interior. O primeiro é transmitido por meio dos movimentos, as roupas litúrgicas e os objetos sagrados. O segundo é a transformação interna em algo outro, diferente da identidade cotidiana, é o duplo espiritual que encontra-se no orum.

O segundo aspecto exterior são as roupas litúrgicas, os materiais com os quais são costurados nos contam as fontes de subsistência (por exemplo uma roupa de conchas mostra que aquela comunidade vive de pesca) e nos indica qual seja a sua posição na hierarquia social (através da posição de algumas partes do vestido percebe-se se são mulheres iniciadas ou não e há quanto tempo; se são filhas de uma divindade feminina ou não, etc.).

O terceiro aspecto, aquilo dos objetos sagrados relata: a qualidade do orixá, a sua ligação mitológica e a sua função cósmica, por exemplo o abebé, um leque e a espada de Iemanjá relatam seja o lado guerreiro da deusa seja a sua ligação com o mundo feminino relatado por meio da forma redonda do abebé e da cor de prata do mesmo que lembra a lua, o elemento do feminino por excelência.

O aspecto interior da dança é a metamorfose que acontece dentro da sacerdotisa ao longo do transe. Este fenômeno, do qual muito se escreveu, mas sem alcançar uma explicação exaustiva devido ao fato de ser uma experiência de fé, intima e preciosa e por isso dificilmente compreendida por aqueles que não a experienciaram.

Tanto a música, quanto a dança que a acompanha expressam o caráter do orixá e os acontecimentos da sua vida. As histórias míticas, as qualidades, as virtudes e as falhas dos orixás são passadas aos fiéis através das letras das cantigas. A concentração e a busca interior permitem expressar a própria música e a própria gestualidade, que é única e pessoal e que corresponde à "qualidade" de cada orixá.

Assim, por exemplo a música de Oiá é caracterizada por grande rapidez, agressividade, determinação e grande variabilidade, percebe-se assim a personalidade da deusa que expressa o elemento ar em movimento. O uso da polirritmia no toque de Oiá tira a possibilidade de encontrar uma pausa no ritmo e dá ao toque a sensação da impossibilidade de botar os pés no chão. Enquanto a musica de Iemanjá é caracterizada por movimentos lentos e amplos, que expressam o movimento das ondas do mar. Por sendo em ritmo binário a sensação é aquela de um movimento circular, expressado também na dança.

São reconhecíveis dois tipos de dança:

a) um primeiro tipo, no começo da festa, o xirê (literalmente “brincar”), onde se canta para todos os orixás um mínimo de três cantigas, acompanhadas pelas danças. Cada orixá possui cantigas e gestualidades particulares, pertencentes só a ele. Essas danças são previsíveis, porque são executadas ainda em estado consciente e seguem um padrão fixo, a depender do orixá dono da festa. São danças de invocação e de preparação, poderia ser equiparada a uma meditação dinâmica. Os movimentos são de dimensão pequena e chamam-se “dançar pequenino”. Servem para concentrar as energias, mas também para as pessoas se centrarem e para prepararem-se a receber o orixá;

b) um segundo tipo, são danças realizadas durante o transe; é o próprio orixá que dança nesse momento, seguindo o ritmo sagrado dos tambores. Nessa segunda parte, o andamento da festa não é fixo porque, apesar de existir um padrão, não se pode saber exatamente quais serão as coreografias que os orixás irão dançar, pois o andamento depende de varias causas visiveis e não.

Cada orixá possui um toque característico que o identifica mais varias cantigas com ritmos diferentes que são executados com outras frases coreuticas. Então cada divindade possui um proprio repertório de danças e um repertório próprio de cantigas nas quais são relatados os fatos míticos da sua vida. Assim que cada casa de candomblé possui um mínimo de 500 cantos liturgicos, por isso è muito difícil ter uma idéia clara do desenvolvimento do ritual. O orixá mostra ao público a sua história mitológica, redistribuindo a energia vital, axé e trazendo o mundo sagrado de volta ao cotidiano.

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