GBOBO OHUN TI A BÀ SE NI AYÉ L'A O KUNLẸ̀ RÒ
NI Ọ̀RUN:
PROCESSO ESCATOLÓGICO NO BATUQUE DO RIO GRANDE
DO SUL
Hendrix A.A. Silveira
Resumo
Todas as religiões possuem
uma complexidade teológica. E toda teologia pressupõe estudos a respeito de três elementos
fundantes nas crenças religiosas: a teogonia (origem das divindades), a cosmogonia (origem do
universo) e a escatologia (fim último de todas as coisas). Este artigo pretende
expôr alguns elementos da escatologia nas religiões de matriz africana com
enfoque no Batuque do Rio Grande do Sul, apresentando dogmas, doutrinas,
liturgias e divindades relacionadas com o tema, a partir de uma epistemologia
construída sobre um diálogo entre elementos teóricos da Filosofia, da Teologia
e da História das Religiões.
Introdução
O presente trabalho tem como
objetivo esclarecer um aspecto específico da teologia yorùbá que explica o processo escatológico
segundo os conceitos desse povo. Para compreendermos efetivamente este
processo, dissertarei sobre o seu conhecimento sobre Deus, o papel do texto
sagrado de Ifá, as concepções sobre morte,
a divindade escatológica, os rituais fúnebres e o destino final das pessoas.
A filosofia yorùbá está
sustentada no tripé: riqueza, filhos e vida longa. A vida longa é o mais
importante, pois possibilita as outras duas. De fato a vida é entendida sempre
como boa, uma dádiva de Deus, por isso os yorùbá entendem que a vida é o bem
mais precioso que temos e viver bem significa seguir os valores civilizatórios legados
pelos antepassados que são rememorados, de
tempos em tempos, em rituais específicos. Foram os antepassados que
deixaram para seus descendentes os princípios éticos e morais, assim como o
conhecimento da cultura religiosa que serve como cimento na
construção das suas vidas.
A vida tem que ser vivida na
sua total plenitude. De fato a religião yorùbá é completamente sensitiva: o
tato, o olfato, a visão, a audição e o paladar estão presentes em todos os
ritos, seja de nascimentos, casamentos, iniciações ou morte.
A vida é sempre celebrada.
Para o ocidental bom é estar
morto, pois sempre vê a vida como algo difícil, o sofrimento é sempre visto
como inerente à vida e que o melhor lugar para se estar é perto de Deus, ou
seja, morto.
As religiões de matriz
africana foram amplamente estudadas por antropólogos e etnólogos que não
contribuíram completamente para o desenvolvimento do ser humano que vivencia
essas religiões.
Muitas vezes esses estudos
serviram para receber seus títulos de mestrado e doutorado numa perspectiva “desde fora para
dentro”.
As palavras em língua yorùbá que figuram neste trabalho estão
escritos segundo a obra Uma abordagem moderna ao yorùbá
(Edição do Autor, 2011), do linguista nigeriano Gideon Babalọlá Ìdòwú. Utilizamos a
ortografia moderna a fim de tornar mais compreensível a rica tradição oral preservada no Batuque. A
língua yorùbá é tonal e palavras idênticas porém pronunciadas de forma diferente se referem a coisas
diferentes.
Por exemplo: owó (dinheiro),
òwò (negócio), ọwọ́ (mão), ọwọ̀ (vassoura),
Ọ̀wọ̀ (nome de uma cidade nigeriana).
O alfabeto yorùbá é
constituído por 25 letras: A B D E Ẹ F G GB H I J K L M N O Ọ P R S Ṣ T U W Y.
Consoantes e vogais têm, em geral, o mesmo valor que em português, porém a
vogal E pronuncia-se sempre fechada,
como em “ema”, a Ẹ é sempre aberta como em “Eva”. G tem som gutural como em
“gado”, e nunca como J.
GB é explosivo. H é sempre
pronunciado e tem som aspirado como em “hell” (inglês). A vogal O é fechado,
como em “ovo” e Ọ é aberto como em “pó”.
R tem um som brando como em “rest” (inglês), nunca como RR. A consoante S é sibilante como em “sistema”
e Ṣ é chiada como em “xícara” ou “chimarrão”. W
tem som de U e Y tem som de I. Não existem as consoantes C, Q, V, X e Z.
A indicação do tom das
sílabas é feita pela acentuação: grave indica tom baixo (dó), sem acento é tom médio (ré) e
agudo indica tom alto (mi).
Os conceitos “desde fora para
dentro” e “desde dentro para fora” foram desenvolvidos por Juana Elbein dos Santos (Vozes,
1986) como método para os entendimentos das vivências afroreligiosas. Santos
define que os estudos acadêmicos costumam ser “desde fora para dentro”.
Modernamente os teólogos
apresentam novas soluções para os problemas escatológicos, fazendo da salvação
individual e coletiva não objeto de uma espera passiva, mas de uma esperança
ativa, em que a plenitude do desenvolvimento humano realizam um encontro
espiritual com Deus. Neste ínterim surgem vivenciadores das religiões de matriz
africana que levam até a academia os seus estudos na perspectiva “desde
dentro para fora”.
São antropólogos, etnólogos,
sociólogos, historiadores e até teólogos que, por serem iniciados, podem
retransmitir um saber mantido apenas no interior de seu sistema de crenças.
Este estudo busca reconstruir
epistemologicamente uma teologia africana que fundamenta os ritos funerários do
Batuque. As obras de José Beniste e Juana Elbein dos Santos vêm ao encontro
dessa proposta já que são verdadeiros tratados teológicos, ainda que a formação
dos autores não contemple esta forma de entender as relações entre Deus e o
homem. Beniste e Santos são acadêmicos (historiador e etnóloga,
respectivamente) e iniciados no culto aos
Òrìṣà, por isso suas obras trazem elementos constitutivos da vivência
religiosa aliada à metodologia científica.
O livro “Ọ̀run-Àiyé”
(Bertrand Brasil, 2008) de José Beniste é a obra que mais usei neste trabalho
devido a riqueza de informações resultantes de profundas pesquisas do autor. Já
“Os nagô e a morte” (Vozes, 1986) é a tese de doutorado em etnologia pela
Sorbonne de Juana Elbein dos Santos. Embora este trabalho seja criticado por alguns
antropólogos, as informações trazidas nele são de grande aporte para entendimentos
teológicos sobre as práticas afro-brasileiras. Além destes dois autores também
utilizarei outros que estão arrolados nas referências bibliográficas.
O termo escatologia está
sendo empregado aqui no sentido de crença ou doutrina teológica a respeito do
destino do homem após à morte (ESCATOLOGIA, 1999, CD).
A dimensão escatológica nas
religiões de matriz africana.
A religião tradicional
africana, de forma geral, não trata de uma escatologia onde os estudiosos
costumam trazer conceitos, muitas vezes eurocêntricos, destituindo a dinâmica
da cosmovisão empregada pelos próprios vivenciadores. O contrário seria se
inserir na vivência afro-religiosa permitindo, assim, uma experiência viva,
codificada internamente, capaz de transcender as expectativas do estudo
meramente bibliográfico. É a visão “desde dentro para fora”.
A escatologia yorùbá é sempre de cunho individual, ou seja,
para onde vamos ao morrermos. Essa escatologia é de cunho dialético, já que é
fundamentada sobre raciocínios sobre a filosofia e a teologia.
Para os yorùbá a existência
transcorre simultaneamente em dois planos: no Ayé e no Ọ̀run. O Ayé é a Terra,
o mundo material, imanente, onde vivem os
araAyé, os seres naturais. Ọ̀run é
o espaço mítico sobrenatural, imaterial, transcendente, onde vivem os ara-Ọ̀run, os
seres sobrenaturais.
Quanto ao Ọ̀run, Juana dos
Santos é insistente:
[…] o espaço ọ̀ run
compreende simultaneamente todo o do àiyé, terra e céu inclusos, e conseqüentemente
todas as entidades sobrenaturais, quer elas sejam associadas ao ar, à terra ou
às águas, e que todas são invocadas e surgem da terra. É assim que os ara-ọ̀ run
são também chamados irúnmalẹ̀ [...]
É no Ọ̀run que se encontra Olódùmarè (ou Eledùmarè, Edùmarè, Ọlọ́run, Ọba-Ọ̀run), o Ser Supremo dos yorùbá e detentor dos poderes que
possibilitam e regulam toda a existência, tanto no Ọ̀run como no Ayé. É de
Olódùmarè que vem o àṣẹ, a força imaterial divina, poder de criação e
transformação de todas as coisas.
Entre os seus atributos temos
o de Criador, pois tudo aquilo que existe, inclusive os Òrìṣà, todas as formas
de espíritos, todos os seres viventes, e o próprio trabalho da criação da
Terra, têm sua origem nEle; o de rei, pois na concepção antropomórfica de Deus,
os yorùbá o veem como um rei com
majestade única e incomparável; o de Juiz, pois todos os atos dos homens e até
dos Òrìṣà não escapam ao seu julgamento; é
onipotente, pois para Ele nada é impossível; é imortal, pois a morte é criação
sua e não pode submeter-lhe; é único, por isso não existe formas de culto,
imagens ou pinturas, pois não pode ser comparado; é onisciente; é
transcendente; é entendido como sagrado tão ritual como eticamente.
Os Òrìṣà, pelo contrário, não são deuses, pois
não possuem essas qualidades. Os Òrìṣà foram criados por Olódùmarè e ganharam
dEle seus poderes, assim cada Òrìṣà é entendido como uma manifestação de
Olódùmarè, mas não Ele mesmo. Em função disso podemos seguramente classificar a
religião yorùbá como monoteísta.
Cada Òrìṣà tem demandas
específicas e receberam de Olódùmarè poderes para realizá-las.
Escatologicamente três Òrìṣà
têm papeis importantes: Ọ̀rúnmìlà, Ikú e Ọya.
Assim como os judeus, os yorùbá têm sua história centrada em
narrativas cosmogônicas. Estas narrativas estão registradas no Ifá.
Segundo a tradição dos
yorùbá, Ifá é um texto oral sagrado que narra toda a história da criação da
Terra, das divindades e dos seres humanos.
Ifá é composto por dezesseis Odù. Cada Odù representa um capítulo da
narrativa mitológica que subdividem-se em dezesseis ìtàn (mitos) que, por sua vez, subdividem-se
em dezesseis ẹsẹ (versos), totalizando 4096 versos. Cada verso conta uma
história que serve para explicar a realidade, a sociedade, a ritualística, a
teologia e a filosofia iorubana.
O conhecimento de Ifá tem origem na divindade chamada Ọ̀rúnmìlà, que carrega vários títulos como:
Gbayé gbọ̀run (aquele que vive tanto na Terra como no Céu), Alàtùúnṣe Ayé
(Aquele que coloca o mundo em ordem), Àgbọnnírẹ̀ gún (O que nunca é
esquecido), Ẹlẹ́rìí Ìpín (Testemunha da
sorte das pessoas), Ọ mọran (O conhecedor
de todos os segredos) e O pitan Ayé (O grande historiador do mundo).
Wándé Abímbólá, citado por
Adékọ̀yà, diz que “Ifá, também conhecido como Ọ̀rúnmìlà, é o deus yorùbá da
sabedoria. Ele é a principal divindade do povo yorùbá.
Acredita-se que Ele é o
grande ministro de Olódùmarè (Deus todo-poderoso) enviado do Céu para Terra
para desenvolver funções específicas.”
Ọ̀rúnmìlà é a testemunha de
Olódùmarè. Ele estava na criação das coisas do mundo e dos seres humanos, por
isso Ele é regente do mundo-além e do mundo dos homens, ciente dos segredos,
obstáculos e soluções dos malefícios humanos. É sempre referido como homem
muito sábio, alguém que era consultado pelo povo e ajudava a todos que o
procurava. Por isso, quando se retira da Terra para viver no Ọ̀run, Ọ̀rúnmìlà deixa para seus filhos dezesseis nozes-de-cola com os
quais poderão consultá-lo e assim perpetuar esse conhecimento Seus filhos se tornaram bàbáláwo,
os “pais do segredo”, e se perpetuaram até os dias de hoje
Ọ̀rúnmìlà também é entendido
como a divindade da História, pois para os yorùbás mito e história se
confundem. Os sacerdotes de Ọ̀rúnmìlà
sabem de cor todos os 4096 versos de Ifá tornando-se os detentores de toda a
cultura yorùbá.
Outra importante divindade
escatológica é a morte, pois, segundo Beniste, “é visto como um agente criado
por Olódùmarè para remover as pessoas cujo tempo na Terra tenha terminado.”
Ìkú, a Morte, é uma divindade
masculina cuja lógica é para pessoas velhas, motivo pelo qual a morte de um
jovem é visto como uma tragédia.
Um mito revela a origem de
seu nefasto ofício:
No dia em que a mãe da morte
foi espancada no mercado de Ejìgbòmẹkùn, a Morte ouviu e gritou alto
enfurecida.
A Morte fez do elefante a
esposa de seu cavalo. Ele fez do búfalo sua corda. Fez do escorpião o seu esporão bem
firme pronto para a luta.
Este evento fez com que Ìkú matasse indiscriminadamente criando
grande caos no mundo. Os homens consultaram
Ifá que lhes ensinou a fazer oferendas para acalmar a Morte. Assim foi feito e a
ordem se estabeleceu novamente. Ìkú então
se dedicou a levar apenas aqueles que já viveram o bastante na Terra.
Em outro mito, Ìkú ganha sua
missão de Olódùmarè por ter sido o Òrìṣà que deu a Òṣàlá a lama primordial para
fazer o homem:
Quando Olódùmarè ordenou que Òṣàlá criasse os seres humanos, pediu para
todos os Òrìṣà que trouxessem o material
que melhor servisse.
Trouxeram madeira, pedra,
água, areia, mas nada resolvia. Ìkú
pediu para que Nàná cedesse o elemento de seus domínios, a lama primordial,
para que Òṣàlá fizesse os seres humanos. Ela concordou desde que Ele ficasse incumbido
de trazer a lama de volta ao final da vida de cada indivíduo.
Assim se sucedeu: Òṣàlá cria
os seres humanos da lama primordial e Ìkú os trata de devolver para Nàná.
Então quando a pessoa é
tocada por Ìkú, seu corpo perece e é restituído à natureza ao ser enterrado. O
seu “corpo espiritual”, por outro lado, é composto de várias unidades reunidas
e que terão um destino próprio cada uma:
Ẹ̀mí, o sopro divino, abandona o corpo retornando para Olódùmarè; imediatamente
Bara, o Òrìṣà que permite a mobilidade do corpo logo o deixa; o Òrí, o
princípio de individualidade da pessoa, perece com ela, a acompanha na morte,
juntamente com seu destino, ou como diz o teólogo Jayro
Pereira de Jesus, o seu plano mítico-social (com. Pes.); o Òrìṣà pessoal, que
define a origem mítica da pessoa, retorna ao Òrìṣà geral, do qual é uma parte
infinitésima; a alma propriamente dita é levada por Ọya ao Ọ̀run, que poderá
retornar no seio familiar, continuamente, através do àtúnwa (É esta alma que
será cultuada como Égún individualizado, espírito de antepassado familiar, se
foi uma pessoa que mereça este reconhecimento. Senão fará parte do culto coletivo
aos ancestrais. A quem não é feito os rituais prescritos pode se tornar
Ápáráká, espíritos perturbadores.).
Divindade feminina, Ọya
está intimamente relacionada com as almas dos mortos – os Égún.
Ela carrega um ìrùkéré, um
pequeno espanta-moscas feito com rabo de cavalo que serve para controlá-los. É
a divindade escatológica por excelência, pois é quem leva as almas dos mortos
para um dos nove espaços de Ọ̀run.
Ọya, também chamada de
Yánsàn, é uma divindade brava e guerreira, ao mesmo tempo é sensual e amorosa e
possui uma grande devoção à família. Está relacionada com a bravura do búfalo,
animal que, por vezes, os mitos narram em que se transforma, e com os ventos e
tempestades, representações de sua fúria.
Alguns mitos narram seu poder
sobre os Égún. Em uma delas Ọya é esposa de Ògún, o Òrìṣà ferreiro. Ela atiça o
braseiro que esquenta o metal fazendo um som melodioso que atraiu um Égún que
vinha passando, o dominando.
Noutro mito, Ọdẹ Odulẹkẹ – o
grande chefe caçador – encontrou uma órfã Nupe no mercado principal de Kétu,
seu reino. A garotinha estrangeira parecia uma cabrita levada. Odulẹkẹ,
emocionado, resolveu adotá-la, dando-lhe o nome de Ọya: ligeira, rápida, em
língua yorùbá. Passou-se o tempo e o
chefe caçador ensinou a filha tudo o que sabia de feitiçaria, caçadas e
estratégias de guerra, exercitando-a na generosidade e no gosto pela arte. Um
dia Ìkú levou o grande Ọdẹ, para a tristeza de Ọya, a qual durante sete dias e
sete noites, cantou e dançou em homenagem àquele que amara tanto. Ela reuniu as
ferramentas de caça de Odulẹkẹ, cozinhou as iguarias de que ela mais gostava,
entoou cânticos os mais significativos em homenagem ao pai, dançando durante
sete noites, na companhia de seus colegas de caça, de todos os amigos, que
também dançaram, cantaram e celebraram a memória de um bravo; o grande provedor
da aldeia. Durante o àjèjé (vigília), os
amigos confraternizaram-se e os desafetos congraçaram-se. Na última noite, os celebrantes
reuniram todos os pertences, as comidas e ferramentas do Ọdẹ e foram depositar
o “carrego” no pé de um Iróko, a árvore Òrìṣà, nas profundezas da mata.
Olódùmarè, inspirado pela
dedicação de Ọya, lhe concedeu o título
de Rainha dos Espíritos, ficando com a responsabilidade de atravessar a alma do
falecido entre os nove espaços do Ọ̀run. Assim Ọdẹ Odulẹkẹ se tornou o primeiro
ancestral a ser cultuado, sendo chamado de Èsá Akèrán. E o ritual criado por Ọya
foi o primeiro Aròsún realizado.
Aròsún é o nome dado aos
rituais fúnebres no Batuque, religião de matriz africana vivenciada no Rio
Grande do Sul. Palavra yorùbá que é a
contração de duas outras: ara (corpo) e òsùn (sono). Aròsún significa o “corpo
que dorme”, pois para os yorùbás “o sono
é primo da morte”. Os bantus, que deram origem aos chamados candomblés de Angola, celebram o Mukondo e os Jejes, o sirrum ou azeri, também chamado de “tambor de
choro” no Tambor de Mina maranhense, em cerimônias muito semelhantes. Nos
rituais de passagem nas religiões de matriz africana, costumam-se entoar
cantigas em homenagem aos ancestrais de todos as Nações. No Candomblé Kétu o
nome dado é àṣẹ̀ṣẹ̀, corruptela de àjèjè, e o primeiro a ser homenageado nesta
liturgia é Ọdẹ.
O Aròsún é uma cerimônia na
qual os iniciados dançam, cantam, comem e bebem. A liturgia é pública e os
visitantes são convidados para a partilha das iguarias. O traje branco é
obrigatório. A cor branca é utilizada nas celebrações de nascimento e
transformação, sendo necessária nos ritos de passagem de todas as Nações.
Os rituais tem início no dia
de falecimento do iniciado. O corpo é velado no terreiro. As pessoas dançam e
cantam em homenagem ao falecido; balançam seus braços para frente e para trás
indicando que todos estão passando vivos por aquele momento. Depois sai o
cortejo fúnebre com familiares pegando o caixão e balançando, para frente e
para trás, um movimento que simboliza o pertencimento tanto a este quanto ao
outro mundo.
No sexto dia são feitos os
sacrifícios rituais, entoa-se cânticos, faz-se oferendas e come-se o “arroz com
galinha”, prato proibido nos outros dias, mas propiciatório nesses rituais. Ao
sétimo dia são entoados os cânticos sagrados novamente. Prepara-se um banquete
que é refestelado por todos. À ponta da mesa ninguém fica, pois é o lugar do
falecido que, acredita-se, está ali. Após dança-se em círculo e alguns Òrìṣà se manifestam em seus iniciados. Neste
rito específico os Òrìṣà se manifestam silenciosamente, exceto Ọya que faz ecoar sua gargalhada visceral
avisando aos quatro cantos da Terra que Ela está presente. Ọya veio buscar a
alma do morto.
No final da liturgia, todos
os implementos que pertenciam ao falecido, assim como as comidas de que gostava
e as oferendas são reunidas num carrego que será depositado no mato. O mato é um
espaço sagrado que também está relacionado com os ancestrais.
Ọya carrega a alma do morto
para o Ọ̀run Àsàlú, por onde Olódùmarè julgará seus atos e seu caráter. Na
verdade esse julgamento dura todo o tempo de vida da pessoa na Terra. No Ọ̀run Àsàlú Olódùmarè dará seu veredito final
absolvendo ou condenando a pessoa.
Caso a pessoa seja absolvida
irá para um dos bons espaços do Ọ̀run: Ọ̀run Rere, o bom lugar para aqueles que
foram bons durante a vida; Ọ̀run Àlàáfíà, o local de paz e tranquilidade; Ọ̀run
Funfun, espaço do branco e da pureza; ou Ọ̀run Bàbá Ẹni onde se encontrará com
seus ancestrais. Mas se a pessoa for condenada seu destino poderá ser o Ọ̀run
Afẹ́fẹ́, local onde os espíritos permanecem até tudo ser corrigido e onde
ficarão até renascerem; Ọ̀run Àpàádì, espaço dos “cacos”, do lixo celestial,
das coisas quebradas e impossíveis de
reparar e de serem restituídas à vida terrestre através do renascimento; ou Ọ̀run
Burúkú, o mal espaço, quente como pimenta, destinado às pessoas más.
No Ọ̀run Àkàsò os espíritos aguardam o regresso
ao mundo através do renascimento.
Beniste define àtúnwa como
reencarnação, mas não me parece ser este o conceito correto. O conceito de
reencarnação parece significar que uma consciência indivisível pula de corpo em
corpo, acumulando saberes e experiências, com um propósito definido que para os espíritas é a
evolução e para os hindus é o nirvana.
Mas na concepção yorùbá do ser, a pessoa tem sua
individualidade única e completamente presa a sua existência. Com a morte a sua
individualidade também morre.
A alma, no Ọ̀run, se divide, ficando uma parte no Ọ̀run que é sempre relembrada nos rituais aos
antepassados. Outra parte renasce, pois, mesmo sendo a alma de uma antepassado,
ganhará novo plano mítico-social, novo destino, novo Ẹ̀mí, Bara novamente lhe
propicia o movimento, uma nova vida completamente diferente e indiferente
àquela anterior. Ninguém traz nada da vida anterior para esta, portanto os
conceitos espíritas de carma e a “lei da causa e efeito” que implicam os reecarnados
não se aplicam à cosmovisão yorùbá.
Estar vivo é a motivação para
os yorùbá. A morte é enfadonha, por isso nos apressamos para retornar a vida,
pois bom é estar vivo.
Considerações finais
A cosmovisão yorùbá e a
ocidental cristã sobre Deus são muito assimétricas.
Deus, para os yorùbá, age no mundo indiretamente, através
dos Òrìṣà.
Especialmente três têm
posição destacada em sua escatologia: Ọ̀rúnmìlà, Ikú e Ọya.
O primeiro determina a forma
dos ritos e como as pessoas devem se portar durante a vida; o segundo determina
o fim do ser vivente, conclui seu tempo
na Terra, é quem lhe abre as portas para a vida póstuma garantindo sua
continuidade; a terceira é a guia entre os mundos, que nos garante uma passagem
tranquila entre eles.
Uma vez do “outro lado”, a
pessoa pode ser direcionada para um dos quatro bons espaços ou dos dois maus
espaços. O que determinará isso é o comportamento em vida da pessoa. Isto
promove na pessoa a ideia de que deve se portar bem em sociedade, constrói no
ser humano um sentimento de cidadania, civilização, respeito ao próximo, ao
coletivo, à toda humanidade, enfim. Não é a toa que a expressão em língua
nativa gbobo ohun ti a bà se ni Ayé l'a o kunlẹ̀ rò ni Ọ̀run significa: todas
as coisas que fazemos na Terra damos conta de joelhos no Ọ̀run.
Podemos observar neste
pequeno estudo que os ritos funerários do Batuque são de grande importância
para esta religião. O falecimento de um adepto requer ritos específicos que
garantirão à alma do morto um trânsito eficiente do Ayé ao Ọ̀run garantindo, assim, o retorno do
iniciado ao Ayé num ciclo infindável.
* Este artigo é uma revisão
de outro produzido para a disciplina de História das Religiões I,
ministrada pelo Prof. Ricardo
Arthur Fitz, na Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), onde concluí
minha graduação em História.
** Hendrix Alessandro
Anzorena Silveira: Mestrando em Teologia e História (PPG/EST) e Licenciado
em História (FAPA). Bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Integrante do GT
História das Religiões e Religiosidades – ANPUH/RS e Bàbálórìṣà do
Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre.
CONGRESSO INTERNACIONAL DA
FACULDADES EST, 1., 2012, São Leopoldo.
Anais do Congresso
Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 1, 2012. | p.509-519
Referências
17 Semelhante aos conceitos
de Kha e Bha na religião Egípcia.CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1.,
2012, São Leopoldo.
Anais do Congresso
Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 1, 2012. | p.509-519
519
ADÉKỌ̀YÀ, Olúmúyiwá Anthony.
Yorùbá: tradição oral e história. Terceira Imagem:
São Paulo, 1999.
BENISTE, José. Ọ̀run-Àiyé: o encontro de dois mundos: o
sistema de
relacionamento nagô-yorubá
entre o céu e a terra. 6ª ed. Bertrand
Brasil: Rio de
Janeiro, 2008.
ESCATOLOGIA. Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda. Rio de
Janeiro, 1999. 1 CD-ROM.
Produzido por Lexikon Informática Ltda.
ÌDÒWÙ, Gideon Babalọlá. Uma
abordagem moderna ao yorùbá (nagô): gramática,
exercícios, minidicionário.
2ª ed. Porto Alegre: do Autor, 2011.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia
dos orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
______. Segredos guardados:
Orixás na alma brasileira. Companhia das Letras: São
Paulo, 2005.
SANTOS, Juana Elbein
dos. Os nagô e a morte: pàdé, àṣẹ̀ṣẹ̀ e o culto égún na
Bahia. Petrópolis: Vozes,
1986.
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