A iniciação no Candomblé é um rito de passagem, uma morte simbólica que transforma um homem comum em um instrumento do Orixá, em um "elegun", pessoa sujeita ao transe de possessão, a emprestar seu corpo para que Orixá viva entre nós mais uma vez, por um período de horas ou dias.
O iniciando passa por ritos complexos, de isolamento e segregação, de silêncio absoluto, de tonsura ritual, de sacrifícios de animais, de oferendas de alimentos, de pequenos cortes, para inserção de pós mágicos em seu corpo (cicatrizes sagradas que definem os futuros sacerdotes), simbolizando uma volta ao útero da Mãe Terra, de onde renascerá, não um homem comum, mas o instrumento de um Orixá, que por sua boca e seu corpo falará e se manifestará, aumentando assim seu conhecimento e o de todos os outros crentes.
Sua apresentação, já com sua nova personalidade e seu novo nome, ao público do Templo e da cidade, transforma-se então em uma festa de cores e de beleza inenarrável, aonde todos comparecem desejosos de compartilhar Axé (palavra que define nossa Religião: A/Awa: nós, xé: realizar, Axé - nós realizamos).
Por várias vezes o neófito é apresentado ao povo, vestido e pintado com cores próprias do Orixá ao qual é consagrado, ao som dos tambores e de ritmos e cantigas tão antigos quanto a vida dos homens neste mundo.
E a cada troca de roupas, mais o Axé se espalha pelo Templo, culminando com a vinda dos Orixás, que vêm brincar e falar com seus filhos diletos, demonstrando sua satisfação por mais uma etapa cumprida. Cada item tem seu significado nesta hora.
A pena vermelha, chamada "ekodide", que o elegun carrega em sua cabeça, simboliza realeza, honra, status adquirido pelo fato de ele ter se iniciado para ser um novo sacerdote dedicado ao culto daquele Orixá.
As pinturas em cor branca, azul e vermelha, feitas a partir de substâncias vegetais e minerais, são os símbolos dos líquidos vitais de animais, plantas e do próprio ser humano, essenciais para a nova vida do iniciado.
A melhor roupa vestida por ele, por sua família, e por todos os presentes, demonstram o respeito e o apreço por Orixá.
Como se fossem se apresentar frente a reis, nada menos que o melhor é permitido, uma vez que muitos reis são os representantes de nossos Orixás neste mundo, descendentes diretos que aqui ficaram para perpetuar sua força vital.
Isto se estende aos alimentos e bebidas, cuja qualidade é severamente observada, aos animais oferecidos, às contas para a confecção de colares, e a todos objetos que compõem o Ebó.
O bom não é suficiente, só o melhor é dado para o Orixá. Por muitos dias o neófito irá carregar consigo um colar especial de sagração no pescoço, simbolizando seu amor, devoção e sujeição ao Orixá.
Neste período também cumprirá resguardo sexual, porque esta energia não pode ser desperdiçada, toda sua força energética deve estar centrada em Orixá.
Comerá comidas especiais, dormirá no chão, em uma esteira, aprenderá com os mais velhos as orações e cânticos de seu Orixá.
É um tempo de amor, dedicação e aprendizado, um reaprender a viver, uma inserção do sagrado no cotidiano, uma experiência que não pode ser descrita, mas sim vivida.
E a possessão faz parte de tudo isso, um ser dominado; um compartilhar corpo e espírito com Orixá; um ser o deus e voltar a ser o homem; sem a menor possibilidade de interferência, em que a perda de vontade própria e a submissão são aprendidos sem que se ensine ou aprenda, por instinto e memória ancestral.
Algo de tribal, algo de divino, algo de humano, algo de fantástico. Ser para saber.
E, ao fim de tudo, o elegun reaprende os atos do dia a dia, retoma sua vida diária, mas para ele estará em primeiro lugar e sempre o Orixá.
E, conhecendo através do oráculo sagrado, o Ifá, suas interdições, as proibições que Orixá e ancestrais lhe deram durante sua iniciação, ele conhecerá seu lugar na rígida hierarquia tribal, familiar e religiosa e viverá melhor sendo um "omo awo", filho do segredo, do que sendo tão somente um ser humano.
Àse gbogbo.
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