Nota-se cada vez mais uma grande diferença de opiniões a respeito de vários assuntos dentro da Religião Afro-Brasileira, em especial ao Batuque do RS, quando se refere ao tema: tradição x modernidade.
Muitas pessoas denotam a modernidade, no que se refere a determinados preceitos ritualísticos fora do ortodoxo, tradicional, com certa preocupação na mudança dos ritos com relação ao passado;
outras alegam estar certo acompanhar a evolução dos tempos e da tecnologia, aonde vivemos em um mundo onde o orixá cresce e evolui com cada individuo, sendo impossível não nos rendermos à ela.
Com certeza, é marcante o impacto das inovações e das rupturas trazidas pela modernidade: novas tecnologias, novas práticas, novas maneiras de vestir, dançar e comer e que nos levam a pensar como manter viva a tradição nos tempos de tanta mudança? Diante das transformações tecnológicas que seduzem os jovens e os iniciados na religião afro, os mais velhos temem a perda do modo de ser e fazer do fundamento, de todo o universo mítico-ritual que consolida a identidade de um povo ou mesmo da própria religião.
Abordar o tema tradição x modernidade é tocar numa questão difícil, que se reveste de maior complexidade à medida que enfocamos os aspectos mais subjetivos dessa nova religiosidade. Diante da enorme diversidade do fenômeno religioso atual, e pelas constantes transformações que se verifica em todos os seus aspectos, uma vez que existe uma troca quase que constante de idéias, ritos, símbolos e doutrinas, levadas de um lado para outro pela mídia, o que torna quase impossível dizer quais elementos pertencem ou não a determinados lados religiosos. O que se verifica como marca desse fenômeno é a diversidade, o misticismo e o pragmatismo (as coisas valem enquanto funcionam).
Quando falamos de religião na modernidade, precisamos ter em mente que estamos tratando com uma realidade absolutamente diferente de tudo que já se viu até o momento em termos de experiência com o sagrado.
Obviamente que não podemos falar da religiosidade no contexto moderno dentro de uma visão absoluta, uma vez que uns dos fatores marcantes é a ausência de verdades absolutas.
Uma das marcas desse fenômeno é o misticismo, a valorização excessiva do emocional e o abandono da razão. Parece contraditório que vivemos hoje quase que um retorno aos períodos mais primitivos da raça humana. Elementos que agregam as crendices religiosas ganham espaço na religiosidade atual.
A religião já não é o lugar “aonde você vai para servir” ela se tornou a prateleira onde se vende bênçãos, milagres, curas, CDs, DVDs, livros de todos tipos, objetos ungidos e sagrados e todo tipo de bugigangas que alimentam a volúpia de alguns que enriquecem enquanto prometem prosperidade para os outros. Fundamentos expostos em internet, via e-mail, chats, Orkut, consultas virtuais com web cam já substituem com grande êxito o aprendizado e os ritos de antigamente.
O sagrado passou a ser mercadoria comercializada como qualquer outro produto. Na contemporaneidade a idéia é a facilidade, a virtualidade. A mídia trouxe o “delivery” para o batuque, na qual você conecta seu PC domestico e o sacerdote de plantão envia a resposta para o seu problema.
Vivemos hoje o fenômeno da religião virtual, conduzida por pessoas sem rostos, sem manifestação de afeto, que se conhecem apenas pela voz, por mensagens de textos instantâneas e pelo numero da conta bancária onde estes depositam os recursos para manter as estruturas.
Atualmente, a religião e até mesmo os Orixás já não são a quem as pessoas buscam servir e estabelecer relacionamentos para a evolução espiritual. Na verdade, estão a serviço dos humanos e servem enquanto possa atender aos desejos, caprichos e seus devaneios.
O batuque como todas as religiões possuem segredos dogmáticos e rituais que somente interessam aos sacerdotes responsáveis pela continuidade da crença e do rito e que não podem ser debatidos abertamente em meios de comunicação ao livre acesso de qualquer pessoa.
As responsabilidades de coibir estes assuntos são dos Pais e Mães de Santo, em cobrar e exigir dos seus filhos que não interajam nestes aspectos.
Tudo aquilo que foi passado pela verbalidade e prática ritual para quem realmente merecia os conhecimentos sérios e profundos dos fundamentos, agora é aberto e esclarecido vilmente em debates virtuais e ensinamentos tipo “receita de bolo”, a título de impor poder de conhecimento de uns sobre os outros, e que certamente por muitas vezes caem em mãos e bocas erradas. E chegam ao escárnio popular ou ao debate daqueles que não tem conhecimento básico do batuque e tentam com isso impor diferenças que mantenham seus conceitos e opiniões teóricas que confundem os mais novos com verdades que não cabem na nossa cultura religiosa afro-gaúcha.
Fundamentos que antigamente eram tidos no mais completo sigilo, onde o sacerdote somente passava aos seus filhos de confiança e depois de muito tempo de fidelidade e compromisso religioso, podemos hoje em dia facilmente encontrar debates em sites de relacionamentos ao ponto que muitos acabem por adquirir a confiança de fazê-los sem mesmo saber o porquê está fazendo. Fundamentos como a balança, assentamentos, lados de feituras e até mesmo ritos fúnebres como o arisun, são tranquilamente achados em sites de pesquisas como o Google, sem contar o grande número de praticantes que revelam o dogma da ocupação de santo, enfatizando serem conhecedores da manifestação do seu próprio Orixá, atribuindo inclusive qualidades e virtudes, do tipo: Sei q minha chega e é linda e traz a benevolência a todos. A preocupação geral é exatamente na mudança ritualística de muitos fundamentos, aonde num democrático, cada indivíduo tem o seu próprio fundamento, sem preocupar-se em nada com a tradição religiosa passada por nossos antecessores.
Precisamos ter a percepção e o cuidado de que muito a tecnologia esta ai para nos auxiliar e facilitar o trabalho mais árduo que por ventura tenhamos, mas que jamais substituirá o imutável: um Orixá não vira ao mundo pelo som do CD em mp3 e não se invocará suas emanações energéticas com vídeos do Youtube, dentre outros, e ao mesmo tempo podemos verificar na direção contrária, na qual o resultado tem o propósito da agilização do produto final, já que vivemos em uma época em que cada vez mais o tempo está escasso. É o fim da religião tradicional e o começo da pós-religiosidade, (para cunhar mais um termo novo). Nesse contexto prevalece à valorização do divino, onde qualquer pessoa cria a qualquer momento um novo fundamento para a religião, forjada com retalhos de outras feituras.
Temos poucas opções: abandonar a religião ou nos preparar para viver esse novo tempo.
*Texto da palestra no V Seminário de Religiões Afro Brasileiras, Realizado pela Afrobrás, na Assembléia Legislativa do RS em Agosto de 2008.
Axé de Oxalá a todos.
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