ITAN: O MITO YORUBÁ
Um dos equívocos mais frequentes que tenho observado entre os batuqueiros se refere ao tratamento dado aos Ìtàn às histórias míticas dos Orixás.
Costuma-se chamar estas histórias de lendas, termo que não exprime a realidade que se intenciona neste tipo de narrativa.
O interessante é que quando falamos sobre a religião da antiguidade ocidental, sempre nos referimos a mitologia greco-romana, nunca lenda greco-romana. O mesmo não ocorre com a religião africana cujas histórias mitológicas são sempre referendadas como lendas em um flagrante ato de racismo.
Mas qual a diferença entre lendas e mitos?
Lenda é uma narrativa fantasiosa transmitida pela tradição oral através dos tempos. Tem caráter fictício.
Muitas lendas não estão ligadas a temporalidade ou a geografia como, por exemplo, as histórias de lobisomens, vampiros, fantasmas e assombrações. Já outras são bem regionalizadas como Boitatá, Mula-Sem-Cabeça e Saci Pererê que só aparecem no Brasil.
Pelo fato de serem repassadas oralmente, as lendas podem sofrer alterações à medida em que vão sendo recontadas e não é incomum sabermos de histórias de pessoas conhecidas ou conhecidos de conhecidos que viram lobisomens ou Boitatá.
Devido à essas características, além do cientificismo ocidental de entender que a lenda é um tipo de narrativa que depende exclusivamente da credulidade de pessoas incultas, ao considerarmos os Ìtàn como lendas, costuma-se diminuir a sua importância, imaginando que são meras historinhas ilustrativas.
Em função disso, há aqueles que descartam os Ìtàn por acharem que mais atrapalham que agregam. Para estes, me parece que ao desqualificar a importância dos Ìtàn, terão maior domínio sobre suas vontades e sobre os outros.
Existem, também, os que acham que os Ìtàn são a História real, fato verídico, ocorrido há muito tempo atrás. Para estes, se justificaria a ideia de que os Orixás foram homens e mulheres que viveram na Terra e que devido a grandes feitos não teriam morrido de forma natural, mas sim transcendido a materialidade tornando-se Orixás.
A maioria dos antropólogos defendem essa ideia conceituando os Orixás como ancestrais divinizados.
Eles embasam suas teorias na própria visão africana de Ìtàn, pois os iorubás acreditam que estes versos em forma de poema contam a história de seu povo, tal qual o livro Gênesis, contaria a história do povo judeu.
Mas para os historiadores que se debruçam sobre as religiões, tanto o Torá (texto sagrado judaico onde estão reunidos os livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) quanto o Odu Ifá (onde os Ìtàn estão descritos) são narrativas mitológicas, ou seja, mitos cujo papel se diferencia em muito da História e da lenda.
É muito comum tratarmos o mito como sendo uma mentira, ilusão, ou até lenda, o que é um erro, evidentemente. Os mitos são narrativas tradicionais que procuram explicar o mundo por meio do sobrenatural. A narração mitológica envolve basicamente acontecimentos supostos, relativos a épocas primordiais, ocorridos antes do surgimento dos homens (história dos deuses) ou com os "primeiros" homens (história ancestral). Mas o verdadeiro objeto do mito é a apresentação de um conjunto de ocorrências fabulosas com que se procura dar sentido ao mundo.
Para Clyde W. Ford, terapeuta estadunidense e fundador do IAM – Institute of African Mithology, Washington, “[...] essas aventuras de heróis [ou divindades] são mais do que o enredo da história; elas falam, por metáforas, da aventura humana pela vida. Os desafios do herói são nossos... Assim, muitos traços que o herói demonstra para responder os desafios da jornada simbolizam aqueles recursos pessoais a que todos nós devemos recorrer para enfrentar os desafios da vida.”
São vários os tipos de mito: mitos cosmogônicos (teorias da formação do universo), mitos escatológicos (destino último do mundo e da humanidade), mitos sobre o tempo (concepção cíclica ou linear do tempo), mitos teogônicos (origem dos deuses e heróis), etc.
Segundo o professor de História das Religiões, Ricardo Fitz, todas as culturas antigas possuem os seus mitos e eles são importantes para a legitimação do sentimento ético e moral de uma sociedade. É igualmente importante que esses mitos sejam sempre passados às próximas gerações por meio da tradição oral. Isso possibilita uma flexibilização desses mitos que se adaptam às sociedades em seu tempo histórico.
Conservar os mitos em registro escrito os mantêm estagnados, gerando o fundamentalismo tão recorrente em religiões como o judaísmo, o islamismo e o cristianismo que se baseiam em escrituras que acabam se tornando sagradas justamente para impedir a sua mudança.
Com a mudança dos Estados teocráticos por Estados democráticos de Direito, o poder controlador dos mitos foi relegado à esfera religiosa. Assim surgiram as cátedras de Exegese e Hermenêutica como fontes interpretativas dos textos sagrados (orais ou impressos) para a atualidade, seguindo o novo contexto político-social.
Os Ìtàn são os textos sagrados da religião iorubá, assim como o Torá o é para os judeus, a Bíblia para os cristãos e o Alcorão para os islâmicos. É imprescindível que os babalorixás e as ialorixás tenham esse entendimento.
Os Ìtàn não são histórias para entretenimento. É a fonte de explicação para tudo o que envolve nossa religião. Desde a criação do Universo, dos Orixás e dos homens, até o porque de uma pessoa não se dar com outra, passando pela estruturação da religião, o porque dos sacrifícios, das iniciações, o que ocorre após a morte, estão relatados nos Ìtàn que compõe o Odu Ifá.
O conhecimento sobre os Ìtàn são cruciais para o desenrolar do sistema de jogo de búzios adotado no Rio Grande do Sul, de forma que o “olhador” que não os conheça nunca passará de um adivinhador, alguém que usa de intuição para prever o futuro das pessoas – esse é o motivo de sabermos de tantas falhas por aí.
Ìtàn é mito. É texto oral sagrado. É o sangue que dá vida ao nosso Batuque.
Axé.
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